Buscando não se sabe bem o quê.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Subversão


Dispomos de alguns minutos. Nada além disso. Até lá teremos de nos  desarmar. Temos pressa no meio dessa desarrumação. As habilidades necessárias foram esquecidas, as senhas foram corrompidas, nossa memória se apagou,  insistimos em esquecer tudo aquilo que pode nos ajudar. E não podemos - porque não sabemos mais - consultar outras fontes. Temos de  aguardar o inevitável desfecho. Sem dores, mágoas ou rancores, porque certas metas não foram atingidas.  Não sentiremos maiores aflições, porque o corpo é apenas matéria e o espírito está comprometido com os valores universais da infâmia,  nos alimentamos dos fetiches da bolsa de consumo. Buscamos alguma forma de razão, mas não conseguimos encontrar nada além do mais banal sentimento.  E assim eu te dou a minha mão e você pode pegar o que quiser, porque nessas horas a vida deve correr. 

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

La Différence


Pensa, pensa,  na ausência, na presença, no espírito vivo do corpo que abraça o teu, até adormecer e acordar com aquela estranha faixa de luz que nasceu para se fixar na direção dos teus olhos. Já é manhã de algum dia que pode até ser chuvoso.

As pálpebras que protegem os olhos mexem e remexem, não é mais sonho, sono, tampouco um rápido movimento,  a excessiva claridade incomoda e faz acordar, os olhos quase que fechados começam a espreitar  o quarto desarrumado, algumas  almofadas e roupas intimas estão no chão. O sapato descansa sozinho perto da porta ao lado de uma cueca vazia e isso pode ser extremante irritante.

Foi para algum lugar, algum recanto de mundo, pode ser um parque cheio de árvores roxas, onde é sempre agradável o  passeio de bicicleta. Pode ser uma sala vazia, mas com  gente olhando  como se fossem acusar. Pode ser, pode ser, pode ser.

Nunca se sabe a realidade dos outros. O que eles estão fazendo agora quando se espreguiça com tamanha lentidão. O que se sabe é o que imaginamos e muitas vezes, por isso, nos enganamos, porque somos diferentes. Os pés ainda estão dormindo, dormentes eles são espichados e mexidos, a cama está quente e lá fora está um forno. Todos já saíram e o dia apenas  começa.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Existência


Os Réus ouvem atentamente os nobres discursos  da boa oratória. E quando eles se autoelogiam a platéia aplaude, porque isso é importante para o ego geral. São as normas de conduta, do bom comportamento, dos homens e cidadãos de bem. E sentado no meio de tudo, o ser crítico, anota no coração de sua cabeça os detalhes que afloram no meio de toda aquela homenagem. É tudo muito bonito, as emoções são extremamente fortes, sobretudo tendo em vista a complexidade (e a gravidade) daquele momento. Gotas de choro caem sobre o tapete vermelho pisado por sapatos de luxo comprados a preço de banana no mercado universal. E todos estão preocupados com a situação crítica das contas do estado leviatã que adora comer as vísceras dos réus. E aplaudimos contentes -- porque esse é o nosso dever -- as imagens que nos são passadas e repassadas por seus agentes. A res publica não pode ser objeto dos interesses dos grupos privados. Nosso país precisa de transparência. Temos de lutar contra a corrupção, esse é o nosso dever, nobre deputado, ilustre juiz, autoridades aqui presentes. Vossa Excelência esconde dentro do bolso o sorriso amargo da contradição. Enquanto isso, sentado na oitava fila,  o ser crítico fica pensando na vida, na sua existência, no que fez até aqui, no que fará no futuro que está tão próximo. Ele simplesmente não sabe, porque a crise que assola todo mundo, não deixa nenhum espaço para soluções imediatas. Ele deixa a vida passar e por isso aplaude -- como todos os outros réus -- os discursos contundentes e emotivos das autoridades.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Sensação


A boca que toca
suavemente
na cerâmica trabalhada
no desenho da borda
em toda sua espessura
e sente o calor
do líquido
e do aroma
que faz lembrar
algo esquecido
na  infância
primeira
segunda
ou terceira.

Terapia


A angústia deixou para trás, porque passou 42 minutos no divã da terapeuta, da psicanalista ou da psicóloga onde aprendeu a olhar mais para si, apenas para si, somente para si. E saiu do prédio com a sensação esquisita de leveza. E foi para o trabalho e trabalhou. E foi para casa e conseguiu se divertir. E no final da noite pensou duas vezes antes de dormir. E conseguiu dormir até o dia seguinte quando se levantou, tomou o café e se dirigiu ao trabalho. E quando lá chegou sorriu um sorriso tão forte e intenso que parecia algo cínico. E ninguém acreditou naquele riso.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Casa no Litoral

Perdeu a vontade de ser curioso. Olha pela  manzarda esticando o pescoço que doi. Passa a mão  seca e áspera onde sente a dor. Não é nada. Nunca é nada. O  mar hoje está mais revolto do que ontem. Já é tardinha. A imensidão do vazio toma conta do vento que sopra forte em direção ao norte. A água cospe. O vento chia. Não existe aconchego no frio daquele lugar.  A sopa quente de pacote é preparada no velho fogão  duas bocas. Depois, caminha de chinelo curto e chambre longo  até a varanda. Carrega consigo, também,  o pijama rasgado que sobrou do armário da cidade. No apartamento da rua  das Alamedas, no bairro nobre da capital. .São poucos os passos, mas novamente se  encachaçou e por isso se equilibra como pode. Chega onde pensava chegar. Mas se esquece. Por que, afinal, estava ali?   No jogo da memória aparece a velhice, mas não se trata disso. Ainda está na meia idade. Já fez história no serviço público estadual  e um dia foi chamado de assessor especial do Procurador-Geral. Agendava com ele as reuniões com os sucessivos  governadores, administrava os relatórios, corrigia a concordância e os erros de português.  Foi antes de perder tudo. Quando o partido de oposição conseguiu vencer a eleição por apenas dois pontos.  Depois de anos foi exonerado sem direito a aposentadoria ou pensão. Sobrevive numa casa sem espelho e  sem notícia de jornal.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Água Boa


Água boa pode ser morna

Pode ser fria
Pode até ser bem quente
Mas sem danificar os cabelos
Água boa é que molha o corpo inteirinho
e faz a gente suspirar
de prazer

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Líquido



A água que cai da caixa e passa pelos canos. Amortece no subsolo e é bombada para cima,  jorra pela pequena rua  inundando sem controle, porque  escorre pela calçada onde passa um  jovem casal e seus sapatos de verniz.

Fiel


 Vá, vá  e faça tua escolha. Seja franca, não redirecione, apenas encaixe as peças, como se fosse um cubo mágico e tudo pode ainda voltar ao normal.Não subestime a natureza dos outros e nem a minha, porque tudo pode ficar bem, mesmo que de forma esquisita. Vá e volte ou vá e não volte, mas vá.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Quando?



Ela abraça o aparelho porque está com saudades da voz.
A voz que ela mesmo esqueceu, porque não se lembra mais.
Do timbre, da colocação, da postura.
Mas ela espera, porque ela sempre esperou.
Porque assim a vida ensinou.
E ela se posta na cama adormecida a espera da ligação.
Que nunca chega e nunca vem.
A manhã aparece e o equipamento está sem bateria.
E ela recarrega ainda esperançosa.
Que ele algum dia ligue.

Perspicácia

Minha cegueira imensa, vazia, curta. Entra em mim e se apodera de todo o meu corpo. Quem dera um dia eu poder escapar de tamanha insensatez. Eu, um ser ingênuo, pobre e incapaz que cai na armadilha criada pela minha própria imagem e semelhança. Como se fosse um pequeno deus tonto, perdido em alma, em razão, em sentimentos baratos conquistados nas vidas diúrnas e noturnas. Por entre porres e bebedeiras, compromissos e reuniões. E assim me divido, e fico caminhando em contraste, deixando de assumir os meus próprios paradoxos.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Atualizações



Porque  o corpo está prestes a cremar.  Ele jaz profundo, silencioso, branco como a alma. Recém  desligado ele fica distante, fechado no canto, enquanto todos aguardam  a cerimônia final. Ouvem-se vozes,  conversas. Os assuntos, depois de muito tempo, devem ser atualizados. Os endereços foram devidamente anotados. As diretrizes determinam que as  conexões não podem e nem devem cair, há de se manter intacta a rede de interação moral. Todos guardam o devido respeito que o ato exige, as vestimentas:  sapatos,  blusas,  casacos, tudo adequado e apropriado.Todos navegam em volta de seus grupos que se fecham em pequenos círculos, anotando feedbacks  e atualizações. É importante, também, como requer a boa organização,  que se delete o nome e os dados daquele cujo corpo vai ser imediatamente queimado.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

A Arte de Dirigir


Ela ficou p. da cara porque ele implicou. Ela disse bem assim: você está utilizando esse espaço para implicar comigo. Tudo começou por causa de uma mensagem ou de um post sobre o ato  de dirigir. Ela defende a inusitada tese de  que o bom de dirigir é andar nas grandes avenidas livre, leve e solta e ouvir uma boa música, mas na hora de estacionar, é muito chato, é muito ruim, é muito estressante. Ele, ingenuamente, fez um comentário de que dirigir é uma arte e que, portanto, não é algo que possa ser bem executado por qualquer pessoa. O ato de estacionar exige calma e disciplina e não se pode ficar estressado por conta de carros que buzinam ou motoristas que ficam possessos, porque um carro está simplesmente estacionando. Estacionar é um direito. E além disso, é uma arte. Um carro bem estacionado é como uma pintura, um belo texto ou uma escultura maravilhosa. Não é fácil para o motorista ou a motorista (sim existem boas motoristas, eu acho) inserir seu veículo num espaço pequeno e manejar, manejar, manejar até deixar aquela coisinha 10 centímetros da calçada. Isso não é para qualquer um, tem de ser um artista, tem de ser expert. E por conta disso, ela ficou muito indignada com ele. E ele riu, porque ele sempre ri quando ela fica uma fera.

O inspetor, atentamente, ouviu toda a discussão e, depois de tirar o palito da boca, tomou nota no seu caderno encardido.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

A Última do Inspetor


Pois o inspetor -- que andava cansado e aposentado -- foi chamado para uma tarefa das mais difíceis e inusitadas. E lá se foi ele com seu caderninho e lápis na mão, com seu capote bége, seu terno mal engomado e a famosa gravata roxa que era de seu pai, mas isso não faz parte dessa história. Na verdade, ele recebeu um chamado de um certo sujeito. Estacionou o maverick bem em frente ao local indicado, porque o inspetor é mestre na arte de estacionar, e apertou a campainha. O tal  sujeito veio ao seu alcance. Olha, tá tudo muito esquisito. Ele simplesmente parou de reclamar da vida e passou a viver com sorriso no rosto. Dá gargalhadas espontâneas e nunca mais voltou a falar em sofrimentos, angústias, lamentos e ressentimentos. E ela, tadinha, perdeu a paixão de ler e está sempre preocupada com ele. Acha que ele vai ter um treco, que ele não tem idade para essas coisas e não sabe porquê motivos ele anda tão tresloucado. O inspetor olhou fixo para o sujeito e pediu um café. Olhou para os cantos, olhou para os lados, tirou do bolso o palito e enfiou por entre os dentes amarelos. Em seguida, anotou no seu bloco de notas algo que não se pode bem identificar enquanto degustava o café quente com muito açucar. Depois de tantos minutos ele se levantou, caminhou até a porta e exclamou em tom firme, porque o inspetor sempre foi muito seguro de si. O senhor, por gentileza, pode abrir a porta para mim? O sujeito - meio sem o quê dizer -- perguntou? E aí, o que está acontecendo? A vida é assim, tem horas que as pessoas pensam em transgredir e isso não é nada  grave.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

A Perceptível Diferença da Densidade Ótica

Ele não desiste, porque sempre foi assim e continua a falar para ela que sofre. Que sofre muito, que sua vida é um desatino, que tudo é difícil, muito complicado. E ela tem uma paciência de cão e engole sempre, porque nada comenta, nada critica. Apenas anui balançando a cabeça de cima para baixo enquanto lê um livro saboroso. Satisfeito, ele vira para o lado e dorme.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Passagem


Um dia se desce a ladeira do mal entendido. E tudo fica razoavelmente limpo até que uma nova onda chega e leva todas as estruturas criadas para o outro lado da tempestade. . O peso da idade carrega as articulações para o lado da dor. Por motivos de dignidade, solidariedade e sobrevivência  uma dose é aplicada. E a paisagem muda, são  imagens do passado mais antigo. É uma bela sensação de "deja vu" que leva e  parece constante. Envelhecer é algo completamente mágico. Nos últimos tempos disfarça as mãos enrugadas com a manga larga da camisola rosa envelhecida pelo uso e a doença. A tosse que atormenta as glândulas internas na hora do fumo. E o esquecimento constante de recapitular a primeira infância. Não a fase do berço, das mamadeiras e do estojo escolar, mas a pré adolescência tardia. No  momento, os meninos e as menina correm  uniformizados sem direção pelo pátio da escola enquanto a pequena bruma desce trazendo consigo um ambiente sinistro, mas muito belo. Era bom estar ali. Eles jogam bolas: pequenas, grandes, de gude. Elas pulam as cordas.  Encantada teve  a sensação de acordar, porque batia uma luz clara típica do amanhecer. Olhou para o lado e percebeu que estava incrivelmente leve no seu quarto de menina,  a mesinha decorada com os livros encadernados, o ursinho que aquecia sua cama. Sua  pele estava mais macia, as unhas bem  feitas, os cabelos encaracolados, bem do jeito que   mamãe insitia em fazer. Teimosa   chamou seu nome e sua voz foi desaparecendo feito vento no frio. O tempo finalmente passou e ninguém apareceu, porque  ninguém ouviu. Porque não se pode ouvir os movimentos de um corpo que já não existe mais, cansado, exausto e que aguentou até o fim. Pois esse é o sentido da vida.

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quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Thanks, Mr Barret



O homem seguiu as indicações do  GPS até chegar ao  local aguardado e, finalmente,  devolveu o carro alugado. A família saiu apressada carregando as três ou as quatro malas pesadas  e a câmara ficou. As imagens foram salvas, mas o aparelho ficou perdido no meio dos bancos. Muitos carros entravam. Mais do que se imagina. Fazia calor de 35 graus. Ele se deu conta da perda e  resolveu procurar na imensa garagem o  malibu dourado que já havia sido levado. Encontrou três Malibus idênticos, mas  com placas de outros estados ou com características diferentes. Depois de 15 minutos circulando no meio de todos os carros devolvidos  ele encontrou o que procurava no local mais sinistro do estacionamento. Os papéis, a lata do energético, do Sprite, os mapas da Flórida, estavam todos no chão. A velha máquina de fotografia não foi encontrada. Eles haviam encontrado e levado.

Cientes da perda, eles ingressaram imediatamente no aeroporto carregando as malas até o ponto de ônibus que os levariam para outro setor. O suor corria por todos os rostos.  Estavam todos molhados e cansados. Muitas compras foram feitas nos outlets e lojas localizadas estratégicamente nos  parques. O peso estava mais do que pesado. Ao chegar no terminal principal foram direto ao check in automático que não lhes deu resposta. A senhora da companhia, chamada Nancy,  tentou fazer o check in manual e o resultado foi que eles tinham de se apresentar em 15 minutos em outro aeroporto distante 500 km, sob pena de no show. As passagens reservadas e  compradas não teriam mais valor.

Foi quando apareceu o Mr Barret que tomou de  Nancy o comando da situação. Determinado ele começou a digitar com seus negros dedos os teclados da companhia  enquanto mordia, de forma firme e segura,  um velho e usado palito. No fim, o Senhor Barret conseguiu resolver quase todos os problemas e uma multa de 200 dólares foi paga imediatamente, via cartão Amex.

Todos ficaram satisfeitos e  agradeceram ao Mr. Barret, até mesmo o guri.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Viagem de Comemoração


Ele pensou em São Petersburgo, terra do Fiodor. Ou Berlim onde passou alguns meses na metade de sua vida. Poderia ser Paris, Londres, Nova York. Tóquio, talvez. Mas ele preferiu olhar largo. Não pensar apenas em si, mas em todos. Principalmente nele, no tijolinho que está aprendendo que a vida é mesmo cheia de contradições. Ele disse que não anda em montanha russa, mas já admitiu que na mais light talvez ele faça um test drive. E partiremos em seguida em direção à irrealidade cotidiana, onde o mundo fake se fecha e se consolida. E como férias são férias e comemorações são comemorações não pensaremos muito nisso. Esse é o plano. Essa é a estratégia.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Os Dedos

Bate tecla forte, bate firme, bate sem parar. Não pare nunca, continua a bater, a digitar com  os dedos até ficarem cansados, até mesmo exaustos, dormentes, adormecidos e a obrigação natural  de escrever, escrever e escrever. Pequenos poemas, fagulhas, textos, cartas dominantes ou não, prosas incríveis, fantásticas, correspondências, petições, avisos, recados e tudo o que for possível manifestar com esses dedos que valem ouro. E continuo a pensar - a ouvir e a pensar - porque no meu coração não existe espaço suficiente para demonstrar tão profundo afeto. Sou limitado - e enquanto isso enxugo duas lágrimas - e portanto resolvo fazer o que sempre fiz. Esperar, aguardar até que um dia o mundo exploda sobre mim. E enquanto esse dia não chega, passo os dias a bater forte, de forma profunda, muitas vezes desarrazoada, as letras que escolho no teclado e que fazem aquele pequeno ruído tão bom de se ouvir.

Comunicando


Aconchegado numa sala quente, no meio do centro, onde tudo é frio, porque o vento espanta com a sensação de menos zero, com olhar preso a tela, onde está pendurada  uma petição sobre antecipações de tutela ouço o sinal do aviso:   recebo a mensagem no meu e-mail que, na verdade, é um convite para fazer a "sopa da noite do temperamento extravagante e cheio de riso". Meus dedos ficaram loucos - eles é que dominam o meu ser -- para dar um reply que foi mais ou menos esse: "Em uma sala quente numa tarde fria ele abre o e-mail e lê a mensagem deixada. Ele ri, depois fica feliz. Ele olha no relógio e suspira fundo: está quase chegando a hora." E assim vamos comunicando e nos entendendo ou não. Porque assim passam os dias. Apenas porque assim é. E a hora chega e a hora passa. E a vida nunca dá nada de graça.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Levando


Acostumou-se a não compartilhar. A viver na solidão e na timidez. De não mostrar a cara quando se deve. De se esconder quando algo se aproxima. Porque satisfaz, porque é bom assim, porque está habituado, porque não exige maiores esforços. E embutido nesse espírito de avestruz vai seguindo a vida, como ela anda, como ela passa, porque vai levando sem se dar conta de que o mal maior está por vir. E quando ele chega? Nunca se sabe. Pode ser amanhã, depois, no outro ano ou no próximo. Pode ser na próxima década ou mesmo na outra. Nunca se sabe e, portanto, segue protelando. A vida toda foi assim e não existe desejo de mudança. Empurra com a barriga gorda. Dorme até tarde. Deita tarde demais. Come até altas horas, bebe, fuma e se despedaça. O corpo cai, a vida passa e se acostuma e tem medo de agonizar, de sofrer na solidão, de passar os últimos anos de vida sentado numa cadeira velha em um quarto gelado e escuro. Mas isso é futuro, que pode estar próximo ou não. E por isso pensa nisso e se atormenta. Mas no dia seguinte, tonto  ele não se lembra de mais nada e vai levando como sempre foi.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Reis e Rainhas




Percebi tardiamente e por isso já é tarde. Já tive a esperança de que existe volta. Não quero entrar nos devaneios sombrios de uma mente sem paixão. Quero apenas lembrar da história que aconteceu. Apenas isso. E depois colocar tudo dentro de um cofre. E me ver livre de mais um conto de fadas.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Sacro



Morte matada morrida. Simplesmente morte. Morte que está na vida. Morte que já morreu. Morte simplesmente morte. Sobretudo morte. Goste ou não - morte. Que vem - morte. Que nunca vai, porque sempre chega. E quando chega - morte.

Postices





Barriga Vazia


Quero beber, quero comer, quero minha barriga vazia, quero chantily e quero macarrão. Quero minha barriga vazia. Quero beber o vinho, a cerveja o campari e o bacardi. Quero me embriagar de cerveja. Quero minha barriga vazia. Não quero viver com mágoas nem preocupações. Quero acordar bem, não quero dor de cabeça. Quero minha barriga vazia. Quero ser forte, musculoso, conquistar todas. Quero minha barriga vazia, livre dos tecidos adiposos e gorduras fedorentas que causam a acidez do meu destino.


Perdas e Danos


A senha que digitou. Finalmente conseguiu o acesso e obteve os números necessários para fazer a interligação dos valores. Levou 15 minutos para fazer o upload. Chegou em casa cansado e perguntou para a mulher se a sopa estava pronta. Depois de assistir o filme na TV, ele foi dormir e acordou no dia seguinte pronto para a grande caminhada. Saiu para nunca mais voltar e não se sabe até hoje do seu paradeiro. A Interpol foi acionada sem sucesso. Dizem que está a morar na Islândia ou no Paraguai. Ninguém sabe e ninguém viu. O rombo financeiro foi violento. As perdas e danos enormes.


Atenção




Temos medo de tudo: da temperatura da água, da cor da luz do holofote, de atravessar a rua em momentos confusos. E agora, diante da sustentação oral de um tribunal engravatado e togado, as palavras resolvem sair sem resistência, de forma recalcitrante, como se fosse uma rebelião interna. Uma espécie de eureka, algo completamente incomum, uma grata novidade. E, no fim, lá pelas folhas tantas, o discurso esvaziou, porque chegou ao fim. Olhou para cara de todos e percebeu que a unanimidade estava prestando a necessária atenção. Era o que ele queria. Fez uma breve pausa até encontrar uma sensação de conforto. Deu um largo sorriso e exclamou, como se fosse um advogado maroto: muito obrigado pela atenção. E se dirigiu para a cadeira onde estava sentado.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

O Poço




Dentro de mim existe um poço que reluto em descobrir. Não sei se está vazio, se está cheio, mas eu guardo nele todas as minhas aflições, os restos de minhas unhas, os meus baques cotidianos, os foras que levei quando guri, as chantagens que herdei. Outro dia, numa conversa deitada, resolvi que iria procurar a fonte desse poço. Procuro, procuro e pouco encontro a não ser uma pequena pista que considerava irrelevante, mas não é. Sigo a luta, na busca das causas dos meus receios e tento contornar minha incrível timidez esboçando um riso maduro -- sem parecer cínico -- para dizer a todos que tudo está muito bem.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Ponto Final




Pois Darlene que sempre foi Darlene andava solta e leve até que a brisa do desencanto tomou conta do contorno do seu rosto meio azul claro ou amarelado esfolado de memória curta e fotografada pela lente nobre do imbecil do ex namorado que colocou na web o que não deveria ter feito e o resultado inevitável é que o mundo todo viu o que não poderia ser visto e Darlene que sempre foi Darlene ficou cinza de tão triste muito mais triste do que se pode imaginar talvez até mais triste do que toda a tristeza do mundo e nesse exato momento sabedora de toda a verdade ela sentiu o gosto amargo de perder a graça de viver.

Abastecimento




Que se dane a Dinamarca ou a Holanda. Sei lá. Quero mais é partir o meu ovo e misturar com arroz e trucidar esse bife duro de quinta e seguir viagem com destino ao oriente. Não sei se a Finlândia ou a Suécia perdeu, se ganhou ou empatou, porque aqueles três tontos que só falam nisso não se deram o trabalho de explicar. Melhor assim, porque nem estou interessado. Prefiro enxergar a rua, o posto de combustível, os carros parando para abastecer, as pessoas descendo apressadas para ir ao banheiro ou comer um pastel com café bem adocicado. Depois, na saída pretendo comprar uma bala, uma pilha de balas, para poder mastigar enquanto dirijo, porque sei que estou com pressa, porque alguém me chama e estou sendo esperado para a grande partida. Que se dane a Grécia ou a Bélgica ou os Britânicos não sei se eles são fortes, são duros ou viris, porque não estou interessado.

terça-feira, 29 de junho de 2010

Mata Mata




Pipocas muitas. Chopps em litros. Litrões de refris. As infernais vuvuzelas com as cores da bandeira nacional. Gritos, berros, latidos do cachorro contente e aflito. Gol na copa. A favor ou contra. E a torcida festeja e chora. O técnico anda agitado, nervoso, de cócoras olhando para o jogo. O outro segue firme, envolto no seu casaco de grife que não combina com a camisa lilás. O juiz pressionado não tem mais o direito de errar. E a partida na Africa segue firme seu ritmo normal. Até o fim, até a vitória ou a derrota de quem ganhou ou perdeu.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Colheita




Finalmente o sujeito se lembrou que tem de buscar o filho na escola. E o menino fica esperando. Como já ocorreu ontem e anteontem. Quando o carro estaciona a criança desce os degraus da escada com absoluta lentidão, sem vontade de ir. Até que um dia ele se dá conta que está preso numa cadeira sem rodas e passa os dias a esperar a visita do filho que apenas promete, mas nunca vem.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Apenas os Jovens Morrem Jovens




Minha amiga, eu me solidarizo. Meu agir patético foi inventado na hora. Não sei porque cargas dágua aquilo aconteceu. Simplesmente aconteceu. E agora -- quando o pão já está no forno -- tenho apenas de esperar dourar para servir. E o que faço com todo esse enigma? Parece que não penso, que tudo sai como se fosse por espanto. Não consigo controlar minha língua maquiavélica, meu olhar diabólico, minhas mãos retorcidas. E depois passo os dias a guiar, caminhando reflexivo, pelas ruas da noite a procura de um lugar para me embriagar.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Sonho Alegre




Qual o melhor conselho? Da mãe ou da avó? E o menino bobo se encantava por motocicletas e vícios. Um dia foi longe. Para o outro lado do rio. No meio do deserto americano, onde - dizem - moram os chacais. Não encontrou nenhum índio, mas os nativos de Wala Wala. E com eles jogou futebol, tomou cerveja e discutiu política. Levantou sua bagagem, sua mochila desarrumada e voltou para o apartamento familiar. Naquele tempo não havia internet. As opções eram restritas e por isso - tanto faz. Quando assoprava o LP do Gismonti passava a fumaça para o outro lado do bairro. E todos se divertiam. Era como se fosse aula de roda. Diferente da rotina de toda a vida. E num instante de muita paz. Bateu nele um certo "insight". E ele enxergou o mundo pela primeira vez. Mudou a postura da voz. Ergueu a coluna para andar mais alinhado. Cortou os cabelos, fez a barba. Deixou de ler Sartre. E passou a andar de carro veloz, passou perfume na cara. Um certo dia ele encontrou a menina diferente. Que não fazia parte de nenhum lado e sua presença sempre foi forte e marcante. E com ela aprendeu a deixar de ser besta, de ser fútil, de ser esnobe. Muito tempo depois, quando a vida parece bem mais uma necessidade, ele se deu conta de que percorreu o caminho certo, o rumo tranquilo. E por isso foi dormir feliz.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Enfim, Não Estamos Sós



Porque descobrimos protozoários e poríferos numa lua de saturno. Porque embaixo da superfície congelada de uma lua de júpiter existe um vasto oceano onde podem navegar cavalos marinhos. Não estamos sós no nosso sistema solar.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Equilíbrio



Retardando o tropeço ela ergue suas saias ventiladas de amor e ninho. Suspira fundo até o pescoço. Olha ao norte a procura de espaço e reflexão. Não era bem isso o que queria. Agora nem mais é tarde. Passa a noite. Passa o dia. O fogo de outrora continua. O desejo ardente do primeiro beijo que vai ser o primeiro detalhe de toda sua vida. E por isso ela se equilibra. E como equilibrista ela anda saltitante, olhando para os lados, para as curvas, para os homens que a admiram de longe e ela nem percebe. Porque ingênua, porque tonta, porque apenas uma menina.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Cansaço




Tenho de arrumar os trecos, os cacarecos, os troços, os negócios.
Tenho de ver como anda minha vida. Tenho pressa, tenho urgência.
Tenho de fechar agora a minha mala que anda vazia de tanto esforço.
Vou partir, mas volto já.
Não me aguarde, eu telefono.
Para dizer que estou bem.
Que estou fazendo o que devo fazer.
Que estou tranquilo.
E nem estou cansado.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Anos de Vida





Não fosse a luminosidade dos faróis ele nem perceberia que estava sendo seguido. Atravessou a rua quando a chuva engrossou e levou na cabeça o tiro chumbado de uma arma de grosso calibre.
Ficou em coma sete meses, recuperou a consciência e carregando a cicatriz na testa e na cabeça passou no mesmo local um ano depois. Queria conhecer o dono da arma que o fez perder um ano de vida.
Nada encontrou por ali naquele dia e teimoso insistiu. Depois de um certo tempo conseguiu identificar o suspeito. Era um homem baixo de cabelo e pele branca. Seu nome, Nicolau e com ele fez amizade.
Tornaram-se amigos eventuais e quando se encontravam até contavam piadas. Numa dessas noites, num canto de rua escura, ele ergueu o canivete até a artéria mais grossa do pescoço e Nicolau tombou morto na hora.
Ele correu, se escondeu, foi para Curitiba e ficou sabendo que estava sendo procurado e uma preventiva já tinha sido deferida.
Foi quando ele se lembrou das histórias que seu avô contava sobre a juventude numa pequena cidade no interior da Croácia perto do mar Adriático. Era sua chance, gastou suas últimas economias e conseguiu alcançar o Uruguai para se deslocar, de avião, para Madri.
Na Croácia conheceu Erika que lhe ensinou a lingua e a boa técnica agrícola. Lá, como agricultor familiar ele fez história até que um dia a Interpol bateu na sua porta. Sua filhinha, Zara, ainda nem tinha um ano quando ele foi levado para Zagreb.
As autoridades judiciárias decidiram pela extradição e ele teve de voltar para o Brasil e hoje cumpre pena numa penitenciária de uma grande cidade brasileira. Em pouco tempo ele conseguirá passar para o regime semi aberto.

Mais Uma Noite



No frio do centro ele observa a mulher cantando ao longe, ela fuma um pequeno cigarro tailandês e carrega consigo uma chamativa bolsa cor de rosa. Ela é bonita e, por isso, ela é cara. São quatro horas da manhã e a pressão chega com força, os carros passam sem estacionar, as janelas estão carregadas de ausência. Estão todos dormindo, menos ele. Com o mesmo terno cinza ele caminha pela grande avenida a procura de diversão. Os mendigos dormem tentando se proteger fumando a droga que tanto alucina. Ele continua passivo e não sente o cheiro da rua, apenas de si mesmo. Ele sente saudade da vida que ele perdeu na infância. Os tempos são outros, Os tempos estão mesmo difíceis. Ele tenta se embriagar no bar da esquina e não consegue. Ele tem vontade até de acabar com tudo, acabar com todos, acabar com si mesmo. Mas no fundo ele sabe, porque nada é tão obscuro assim, que um dia ele foi feliz. Naquele tempo tudo era tão diferente. Engraçado, as imagens das boas lembranças ele não consegue fixar, pois permanecem distantes, protegidas, blindadas nas últimas prateleiras de sua própria memória. Ele havia percebido que sua paciência para escavar os seus próprios labirintos havia terminado. Não ficou triste por isso. E até riu de sua própria melancolia e esquecimento.. Todas as noites perdido ele caminha sem rumo. E nessa noite ele recebeu, quando atravessava o movimentado e conhecido viaduto, o convite para participar de um fogo amigo. Sentou no abrigo e uma companhia o acolheu com gosto de sopa na boca. Ele teve de pagar o preço convidativo. Toda a noite a mesma rotina. Apesar de tudo, de toda a amargura que carregava ele até sentiu um pequeno e notável prazer e, portanto, conseguiu dormir o sonho dos anjos até o fim tarde seguinte. E quando acordou já era noite. Uma nova noite.

terça-feira, 18 de maio de 2010

O Visto




O formulário foi preenchido talvez irregularmente. Houve um erro de interpretação em relação a uma das perguntas e corro o risco de ter de reagendar a entrevista. As demais questões foram respondidas de forma suscinta, sem chamar a atenção. Entrei no site indicado, fiz o upload da foto que tirei anteontem, paguei a taxa no cartão e peguei minha senha reservada. Com ela posso dar início a toda operação. Nas perguntas de praxe respondi "não". Nunca tive doença grave e contagiosa, nunca fui terrorista, não sou dependente químico de droga alguma, não tenho parentes morando no exterior, trabalho e moro em local fixo e determinado. Portanto, além de ser um homem bom e gentil ( e realmente sou) posso ser considerado uma pessoa de bem e, portanto, sou completamente apto para desembarcar em solo americano. Mas quem vai dizer isso vai ser o funcionário do consulado depois de examinar todos os meus papéis pessoais e vasculhar integralmente a minha linda vidinha.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Enquanto isso em algum pequeno grande lugar...



Roça nela, diz Gustavo, roça nela. E Fábio roçava em Maria, na beira do lago, que na verdade é um rio.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Mulher Submarina




Deite em cima de mim, mulher submarina. Faça de mim o objeto do teu prazer. Quero afundar contigo nas águas ocultas da plataforma. Encontrar lá no fundo a pedra mais preciosa para te dar. E que me leves a navegar pelos mares diversos, pelos oceanos mais profundos, onde ninguém nunca foi, onde ninguém nunca passou. Quero cruzar contigo o cabo da boa esperança. Lá rezarei uma prece para que isso nunca, nunca, nunca acabe. Não vou perder jamais o fôlego. Quero nadar e mergulhar até morrer de fome e de sede. E subir contigo aos céus para flutuar entre as grandes nuvens. Atravessaremos as tempestades, os nimbus de todas as cores, desviaremos dos raios, ouviremos de perto os trovões. E no alto, lá de cima, nos transformaremos em espíritos e baixaremos gasosos e silenciosos em busca de mais diversão. Entraremos nas casas ocultas e conhecidas para olhar as intimades dos outros. E nos excitaremos com as perversões alheias. Invisíveis percorreremos os caminhos mais notáveis. E no auge da madrugada -- quando o silêncio do campo pode ser completamente sentido -- tentaremos fazer o que jamais conseguimos. Nos amar.

Corro




Corro. Na noite chuvosa. Corro. A batida perfeita. Corro. Os meus desafios. Corro. Vou percorrer outros caminhos, andar por ai na noite fria e úmida de outono. É perigoso, eu sei, mas corro. As pessoas circulam para chegar em casa. Corro. Por entre todas elas eu corro. Desvio de onde posso desviar e corro. Os ônibus que circulam pela cidade, lotados de pessoas trabalhadoras, por entre elas eu corro. A playlist está perfeita, ela mantém o meu ritmo e corro. . Ela tem ginga, ela tem equilíbrio e eu corro. Passo pelo centro quase decadente até chegar a beira rio e corro. Onde está a velha usina onde meus passos, enfim, obedecem o ritmo da music. E a pista reta me faz correr com mais intensidade e corro. Com a batida do ritmo corro. Os pingos que caem sobre a cara, que cegam a visão, mas consigo enxergar mesmo assim e, portanto, corro como nunca corri. E sinto a sensação impressionante de liberdade e corro. E, involuntariamente, ergo os braços, as mãos esticadas e canto como jamais cantei. E uma senhora humilde me olha com encanto, penso eu. E uma moça que também corre passa por mim fechada em seu walkman. E ninguém me olha. Ela não me olha. E, portanto, me puxo. A velocidade se torna compulsiva. Faço o possível e o impossível e corro. Porque gosto de correr, porque gosto de ouvir as batidas da música e danço correndo no compasso delas, porque este é o meu tesão, o meu desafio. E chego em casa torto e me alongo e passo o tempo alongando e depois tomo uma ducha longa. E sinto - e como é bom sentir -- os efeitos significativos da gostosa endorfina.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Forever is today




Nem pensar, diante do trauma que fiz e causei. Diante de todas as testemunhas o crime que cometi. Pois fui absolvido pela minha própria alma e agora descanso macio, leve e suave na cama de algodão. Consigo bloquear meus pesadelos com os artifícios da minha inconsistente consciência. Arquitetei uma barreira tal que qualquer vinculação com o fato em si eu automaticamente direciono para outros caminhos que, enfim, se perde em algum labirinto ou se dilui na fumaça do esquecimento. E assim sobrevivo sonhando o sonho dos justos.

sábado, 24 de abril de 2010

O Desentupidor




E diante do vazamento que tomou conta da cozinha chegou o desentupidor. O preço foi elevado, porque nos sábados a corrida é mais cara. Quanto tempo será que isso pode durar? Na verdade, não se pode saber, porque - como ocorre hoje em dia - as variações são constantes, sobretudo quando se trata de circunstâncias complexas. A pergunta inevitável foi feita - falta muito? E o silêncio veio como resposta. As mãos já estavam sujas e a humidade era grande. O cheiro da massa uniforme que começou a surgir era insuportável e contrastava com a aparência suja do piso branco. Onde coloco isso? perguntou o homem com a mão carregada da pasta mal cheirosa. Pode ser no vaso, mas tome cuidado para não entupir. E assim ele fez. No entanto, a caixa continuava entupida. A água não conseguia fluir e era bloqueada pela pasta consistente dos detritos acumulados. Tentou algumas outras vezes e, finalmente admitiu: cheguei ao meu limite, impossível resolver isso apenas com sucção, é necessário um roteador. Onde se consegue um roteador? Ora, com as empresas desentupidoras, é só procurar na páginas amarelas. Mas foi exatamente isso o que fiz e avisei a telefonista de sua empresa que se tratava de desentupimento. Ele olhou firme para as mãos sujas. Então cobro metade do preço.


sexta-feira, 23 de abril de 2010

Contagens




Sobre a pequena mesa -- cadernos com os espirais soltos, canetas gastas sem tampas, lápis quebrados sem pontas, borrachas velhas mordidas, calendários de anos antigos, pilhas gastas, folhas em branco passadas e uma moderna luminária metálica. Debruçado sobre ela, sentado numa pequena cadeira de plástico, um homem novo com aparência de velho. Ele não tem nem mesmo quarenta. Os tempos são atuais, a história se passa hoje, neste exato momento. Cansado da mesma posição o homem cruza e descruza as pernas, tenta alongar e não consegue. Com isso, não se sabe bem o porquê, ele sente sede. Tem dificuldades para levantar, mas assim mesmo busca na prateleira da frente uma garrafa de plástico com líquido preto, uma espécie de coca cola artezanal. Ele bebe, com algum prazer e alívio, o líquido quente.
O dia parece invernal, pois houve a necessidade de se colocar um casaco. Faz dias que ele procurava na pequena janela algum risco de sol que nunca entrou por ali. E nem entrará, porque já é quase noite e os dias estão muito fechados. Pois no centro da grande cidade, onde ele está, os edifícios se conectam uns aos outros e, por isso, as luzes artificiais não se acendem no fim do dia. Elas estão sempre ligadas, mas não são eternas. Naquele pequeno e simples recinto há uma única lâmpada presa na luminária moderna, mas com prazo de validade expirado. Ela pisca de forma constante, cansando e hipnotizando os olhos.
Ele, então, pela terceira vez naquele dia, aceita seu próprio desafio. O homem olha fixo para a luz branca tentando contar quantas vezes ela pisca por minuto. O relógio não mais funciona, as pilhas estão gastas. Ele inicia sussurrando cada número de forma bastante meticulosa: um, dois, três, com todo cuidado para não errar. E segue assim com receio de equívocos, onze, doze, treze. Trinta e um, trinta e dois, trinta e três. Quarenta e quatro, quarenta e cinco, quarenta e seis. E quando chega perto dos sessenta ele sente que já perdeu a contagem. Ele não consegue desanimar, porque aquilo é apenas uma angustiante brincadeira, uma espécie de passatempo compulsório, uma forma que ele encontrou para não perder a lucidez. Em algum momento ele vai conseguir e quando isso ocorrer o tempo e o relógio voltarão a funcionar.
Com essa intenção ele prossegue o desafio e inicia a contagem pela quarta vez naquele dia.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Complicações Complexas




Não quero, não posso, não devo utilizar isso aqui como caixa de experiência. Não foi esse o propósito. Isso é traição, isso é golpe baixo. O objetivo era outro. Não lembro bem qual era, mas era outro. O tempo passa e as vicissitudes da vida complexa fazem a gente mudar de opinião, de postura, de comportamento, de estilo. Nos conservamos, nos revolucionamos, retrocedemos, emburrecemos, ficamos mais espertos. Enfim, somos reféns de nossa própria complexidade. E nada neste mundo sintetiza tão bem o mundo que estamos embutidos do que uma palavra que não diz nada, mas diz tudo: complicado. Defintivamente, é tudo muito complicado.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Fácil




Miojo é a palavra mágica da geração 2000.
Tá com fome?
Come miojo.
É tão fácil de fazer que qualquer um faz.

Na minha época não tinha nada disso.
Era tudo - mais ou menos - diferente.

Um dia chegou, lá em casa, a sopa mágica.
Se despejava o conteúdo do envelope cheia de água fervente.
E a sopa ficava pronta em 20 minutos.
Foi uma revolução.
Que durou pouco.
Era melhor e mais saboroso comprar carnes e verduras no mercado.

A geração 2000 não está interessada em carnes e verduras no mercado.
Eles gostam mesmo é de massa japonesa com shoyu ou sem shoyu.

Patrimônio Líquido




O menino fica alegre quando recebe o jogo. Rasga o pacote rapidamente e faz a instalação. O pai percebe sua felicidade e lhe dá um sorriso grátis. A noite vai e a madrugada chega. Já é outro dia e amanhã tem aula, tem compromisso, tem reunião de condomínio. E diante das tarefas iminentes do dia-a-dia ele se recusa a fazer qualquer tipo de análise. Por ora, não existe lucro, nem prejuízo, apenas investimento. E como fica a questão dos ativos, o problema do passivo? O lucro operacional, o capital que circula a longo e curto prazo? Não existe -- e por hora nem pode existir -- resposta certa e escritural sobre esses assuntos. Talvez não seja o momento. E no fim, se percebe que o balanço sintético dos dias apenas recomenda o necessário descanso. O bocejo chega de forma inevitável. A brincadeira acabou. O menino é obrigado a largar o jogo no meio de seu maior desafio. Amanhã é outro dia e o patrimônio parece que está garantido.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Estaca Zero




Querem motivações, exigem fundamentos - - não conseguimos nos aprofundar de forma definitiva -- hoje o mundo é assim -- e por isso voltamos a estaca zero -- falamos em organizações, corporações, propriedades limitadas -- nos empregamos, gerenciamos, contratamos -- procuramos frases, noções, artifícios -- e torcemos todos para o mesmo time ideológico -- somos taxados de conservadores, egoístas, liberais -- e vivemos cercados por altos muros na cumplicidade de nossos condomínios -- de agora em diante não queremos mais saber de mentiras -- envoltos em hipocrisias, nos disfarçamos e perdemos nossa própria imagem -- canalizados pela quantidade impressionante de opções voltamos a estaca zero.
É na estaca zero que colocamos nosso ponto final -- onde começamos um novo início -- e nos perdemos diante de uma imensidão caótica -- do mundo civilizado que nos avisa acerca do bem e do mal -- E jantamos tranquilos porque a cidade nos oferece sagradas opções -- e voltamos a estaca zero porque nada sabemos -- porque estamos ficando cansados, neuróticos -- porque percebemos que tudo é finito -- e as pessoas morrem -- e ficamos tristes. Entristecidos nos revoltamos - bebemos, fumamos, nos entorpecemos -- morremos de amor e de medo -- e voltamos a estaca zero.

Eu vi


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