Buscando não se sabe bem o quê.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Mulher Submarina




Deite em cima de mim, mulher submarina. Faça de mim o objeto do teu prazer. Quero afundar contigo nas águas ocultas da plataforma. Encontrar lá no fundo a pedra mais preciosa para te dar. E que me leves a navegar pelos mares diversos, pelos oceanos mais profundos, onde ninguém nunca foi, onde ninguém nunca passou. Quero cruzar contigo o cabo da boa esperança. Lá rezarei uma prece para que isso nunca, nunca, nunca acabe. Não vou perder jamais o fôlego. Quero nadar e mergulhar até morrer de fome e de sede. E subir contigo aos céus para flutuar entre as grandes nuvens. Atravessaremos as tempestades, os nimbus de todas as cores, desviaremos dos raios, ouviremos de perto os trovões. E no alto, lá de cima, nos transformaremos em espíritos e baixaremos gasosos e silenciosos em busca de mais diversão. Entraremos nas casas ocultas e conhecidas para olhar as intimades dos outros. E nos excitaremos com as perversões alheias. Invisíveis percorreremos os caminhos mais notáveis. E no auge da madrugada -- quando o silêncio do campo pode ser completamente sentido -- tentaremos fazer o que jamais conseguimos. Nos amar.

Corro




Corro. Na noite chuvosa. Corro. A batida perfeita. Corro. Os meus desafios. Corro. Vou percorrer outros caminhos, andar por ai na noite fria e úmida de outono. É perigoso, eu sei, mas corro. As pessoas circulam para chegar em casa. Corro. Por entre todas elas eu corro. Desvio de onde posso desviar e corro. Os ônibus que circulam pela cidade, lotados de pessoas trabalhadoras, por entre elas eu corro. A playlist está perfeita, ela mantém o meu ritmo e corro. . Ela tem ginga, ela tem equilíbrio e eu corro. Passo pelo centro quase decadente até chegar a beira rio e corro. Onde está a velha usina onde meus passos, enfim, obedecem o ritmo da music. E a pista reta me faz correr com mais intensidade e corro. Com a batida do ritmo corro. Os pingos que caem sobre a cara, que cegam a visão, mas consigo enxergar mesmo assim e, portanto, corro como nunca corri. E sinto a sensação impressionante de liberdade e corro. E, involuntariamente, ergo os braços, as mãos esticadas e canto como jamais cantei. E uma senhora humilde me olha com encanto, penso eu. E uma moça que também corre passa por mim fechada em seu walkman. E ninguém me olha. Ela não me olha. E, portanto, me puxo. A velocidade se torna compulsiva. Faço o possível e o impossível e corro. Porque gosto de correr, porque gosto de ouvir as batidas da música e danço correndo no compasso delas, porque este é o meu tesão, o meu desafio. E chego em casa torto e me alongo e passo o tempo alongando e depois tomo uma ducha longa. E sinto - e como é bom sentir -- os efeitos significativos da gostosa endorfina.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Forever is today




Nem pensar, diante do trauma que fiz e causei. Diante de todas as testemunhas o crime que cometi. Pois fui absolvido pela minha própria alma e agora descanso macio, leve e suave na cama de algodão. Consigo bloquear meus pesadelos com os artifícios da minha inconsistente consciência. Arquitetei uma barreira tal que qualquer vinculação com o fato em si eu automaticamente direciono para outros caminhos que, enfim, se perde em algum labirinto ou se dilui na fumaça do esquecimento. E assim sobrevivo sonhando o sonho dos justos.

sábado, 24 de abril de 2010

O Desentupidor




E diante do vazamento que tomou conta da cozinha chegou o desentupidor. O preço foi elevado, porque nos sábados a corrida é mais cara. Quanto tempo será que isso pode durar? Na verdade, não se pode saber, porque - como ocorre hoje em dia - as variações são constantes, sobretudo quando se trata de circunstâncias complexas. A pergunta inevitável foi feita - falta muito? E o silêncio veio como resposta. As mãos já estavam sujas e a humidade era grande. O cheiro da massa uniforme que começou a surgir era insuportável e contrastava com a aparência suja do piso branco. Onde coloco isso? perguntou o homem com a mão carregada da pasta mal cheirosa. Pode ser no vaso, mas tome cuidado para não entupir. E assim ele fez. No entanto, a caixa continuava entupida. A água não conseguia fluir e era bloqueada pela pasta consistente dos detritos acumulados. Tentou algumas outras vezes e, finalmente admitiu: cheguei ao meu limite, impossível resolver isso apenas com sucção, é necessário um roteador. Onde se consegue um roteador? Ora, com as empresas desentupidoras, é só procurar na páginas amarelas. Mas foi exatamente isso o que fiz e avisei a telefonista de sua empresa que se tratava de desentupimento. Ele olhou firme para as mãos sujas. Então cobro metade do preço.


sexta-feira, 23 de abril de 2010

Contagens




Sobre a pequena mesa -- cadernos com os espirais soltos, canetas gastas sem tampas, lápis quebrados sem pontas, borrachas velhas mordidas, calendários de anos antigos, pilhas gastas, folhas em branco passadas e uma moderna luminária metálica. Debruçado sobre ela, sentado numa pequena cadeira de plástico, um homem novo com aparência de velho. Ele não tem nem mesmo quarenta. Os tempos são atuais, a história se passa hoje, neste exato momento. Cansado da mesma posição o homem cruza e descruza as pernas, tenta alongar e não consegue. Com isso, não se sabe bem o porquê, ele sente sede. Tem dificuldades para levantar, mas assim mesmo busca na prateleira da frente uma garrafa de plástico com líquido preto, uma espécie de coca cola artezanal. Ele bebe, com algum prazer e alívio, o líquido quente.
O dia parece invernal, pois houve a necessidade de se colocar um casaco. Faz dias que ele procurava na pequena janela algum risco de sol que nunca entrou por ali. E nem entrará, porque já é quase noite e os dias estão muito fechados. Pois no centro da grande cidade, onde ele está, os edifícios se conectam uns aos outros e, por isso, as luzes artificiais não se acendem no fim do dia. Elas estão sempre ligadas, mas não são eternas. Naquele pequeno e simples recinto há uma única lâmpada presa na luminária moderna, mas com prazo de validade expirado. Ela pisca de forma constante, cansando e hipnotizando os olhos.
Ele, então, pela terceira vez naquele dia, aceita seu próprio desafio. O homem olha fixo para a luz branca tentando contar quantas vezes ela pisca por minuto. O relógio não mais funciona, as pilhas estão gastas. Ele inicia sussurrando cada número de forma bastante meticulosa: um, dois, três, com todo cuidado para não errar. E segue assim com receio de equívocos, onze, doze, treze. Trinta e um, trinta e dois, trinta e três. Quarenta e quatro, quarenta e cinco, quarenta e seis. E quando chega perto dos sessenta ele sente que já perdeu a contagem. Ele não consegue desanimar, porque aquilo é apenas uma angustiante brincadeira, uma espécie de passatempo compulsório, uma forma que ele encontrou para não perder a lucidez. Em algum momento ele vai conseguir e quando isso ocorrer o tempo e o relógio voltarão a funcionar.
Com essa intenção ele prossegue o desafio e inicia a contagem pela quarta vez naquele dia.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Complicações Complexas




Não quero, não posso, não devo utilizar isso aqui como caixa de experiência. Não foi esse o propósito. Isso é traição, isso é golpe baixo. O objetivo era outro. Não lembro bem qual era, mas era outro. O tempo passa e as vicissitudes da vida complexa fazem a gente mudar de opinião, de postura, de comportamento, de estilo. Nos conservamos, nos revolucionamos, retrocedemos, emburrecemos, ficamos mais espertos. Enfim, somos reféns de nossa própria complexidade. E nada neste mundo sintetiza tão bem o mundo que estamos embutidos do que uma palavra que não diz nada, mas diz tudo: complicado. Defintivamente, é tudo muito complicado.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Fácil




Miojo é a palavra mágica da geração 2000.
Tá com fome?
Come miojo.
É tão fácil de fazer que qualquer um faz.

Na minha época não tinha nada disso.
Era tudo - mais ou menos - diferente.

Um dia chegou, lá em casa, a sopa mágica.
Se despejava o conteúdo do envelope cheia de água fervente.
E a sopa ficava pronta em 20 minutos.
Foi uma revolução.
Que durou pouco.
Era melhor e mais saboroso comprar carnes e verduras no mercado.

A geração 2000 não está interessada em carnes e verduras no mercado.
Eles gostam mesmo é de massa japonesa com shoyu ou sem shoyu.

Patrimônio Líquido




O menino fica alegre quando recebe o jogo. Rasga o pacote rapidamente e faz a instalação. O pai percebe sua felicidade e lhe dá um sorriso grátis. A noite vai e a madrugada chega. Já é outro dia e amanhã tem aula, tem compromisso, tem reunião de condomínio. E diante das tarefas iminentes do dia-a-dia ele se recusa a fazer qualquer tipo de análise. Por ora, não existe lucro, nem prejuízo, apenas investimento. E como fica a questão dos ativos, o problema do passivo? O lucro operacional, o capital que circula a longo e curto prazo? Não existe -- e por hora nem pode existir -- resposta certa e escritural sobre esses assuntos. Talvez não seja o momento. E no fim, se percebe que o balanço sintético dos dias apenas recomenda o necessário descanso. O bocejo chega de forma inevitável. A brincadeira acabou. O menino é obrigado a largar o jogo no meio de seu maior desafio. Amanhã é outro dia e o patrimônio parece que está garantido.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Estaca Zero




Querem motivações, exigem fundamentos - - não conseguimos nos aprofundar de forma definitiva -- hoje o mundo é assim -- e por isso voltamos a estaca zero -- falamos em organizações, corporações, propriedades limitadas -- nos empregamos, gerenciamos, contratamos -- procuramos frases, noções, artifícios -- e torcemos todos para o mesmo time ideológico -- somos taxados de conservadores, egoístas, liberais -- e vivemos cercados por altos muros na cumplicidade de nossos condomínios -- de agora em diante não queremos mais saber de mentiras -- envoltos em hipocrisias, nos disfarçamos e perdemos nossa própria imagem -- canalizados pela quantidade impressionante de opções voltamos a estaca zero.
É na estaca zero que colocamos nosso ponto final -- onde começamos um novo início -- e nos perdemos diante de uma imensidão caótica -- do mundo civilizado que nos avisa acerca do bem e do mal -- E jantamos tranquilos porque a cidade nos oferece sagradas opções -- e voltamos a estaca zero porque nada sabemos -- porque estamos ficando cansados, neuróticos -- porque percebemos que tudo é finito -- e as pessoas morrem -- e ficamos tristes. Entristecidos nos revoltamos - bebemos, fumamos, nos entorpecemos -- morremos de amor e de medo -- e voltamos a estaca zero.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Respeito




Ele queria respeito. Tanto viu, tanto ouviu, tanto sentiu na pele a marca do ódio de seus familiares. É dificil dormir quando a noite é pesada, quando se está de cabeça quente e se tem a absoluta certeza de que a vida, de agora em diante, vai ser diferente.
Ele matou o homem apenas porque se irritou, porque bebeu demais, porque fumou, porque o cabra falara mal de sua família, de seu pai que já morreu, de sua mãe que foi morar com outro e abandonou o lar, de sua irmã vagabunda. O canivete azul da cor do seu time acertou direto a veia do pescoço e o sangue começou a escorrer. Não havia como resistir. Ele correu pelas ruas, passou por avenidas movimentadas, pegou dois ônibus até chegar onde ele atualmente está, na casa de uma amiga que não sabe de nada.
Ele não pode dormir, não consegue. Não é preciso insistir. Sem lástimas ou clichês, porque o que está feito está feito. Não foi um pesadelo, nem apenas um sonho. É a maldita realidade em sua face mais crua, cruel. Com tanta angústia no coração ele se aproxima dela e os dois se enroscam. Ele não se lembra de ter chorado dessa forma antes na vida e por alguns minutos ele esquece. Assim como esquecera o seu celular no local do crime.
Ele, no dia seguinte, foi preso.

Eu vi


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