Buscando não se sabe bem o quê.

terça-feira, 30 de março de 2010

A Felicidade dos Outros




Ela fez o que geralmente faz: cedeu. E cedendo perdeu pontos no relacionamento. Que merda, repetia para si mesma. Falhou na estratégia, na escolha, na opção. Ela fracassou e exitou ainda mais. Deprimida foi ao supermercado comprar ração para os gatos, mas não resistiu ao ver uma magnífica torta de chocolate branco. Voltou para casa e comeu inteirinha. Não deixou sequer um farelo para os animais. Limpou a cozinha e foi deitar.

Quando ele chegou ela estava dormindo. Apenas de calcinha cinza, as coxas grandes sobre o cobertor de oncinha. Afastou os gatos e perto de seu ouvido ele sussurrou: minha pérola. Ela sonhava que estava em outros lugares, fazendo outras coisas com outros homens, mas aquela voz geralmente ríspida e agressiva que ela tanto conhecia tinha, desta vez, um tom diferente: carinhoso, amigo, inclusive sensual e provocante. Ela esboçou um bocejo, virou para o lado e sentiu o bafo quente do hálito gasoso. O que você quer agora? ela perguntou já excitada. Nada, não -- disse ele com voz bastante tímida --pode ficar como está, vou ver televisão na sala, não quero te atrapalhar, os gatos vêm comigo.

E aquele momento se embaralhou no tempo. Oportunidade que se dissipou diante de suas próprias rotinas e neuroses. Assim funciona aquela casa, aquelas pessoas, os nossos personagens, que vivem suas vidas sem maiores rupturas. E nós, que estamos do lado de fora, podemos nos equivocar no julgamento da felicidade dos outros, inclusive deste casal. Podemos interpretar, de uma forma ou de outra, de acordo com as nossas noções, ambições e histórias de vida. Fazemos conjeturas, apostas e muitas vezes nos equivocamos. Essa história do casal que, aparentemente, não se entende ou que não consegue atingir uma certa empatia e cumplicidade pode ser também - por que não?- uma história de amor e felicidade. Vejam as carinhas felizes dos dois com os seus gatinhos. Eles não são uns mimos?

sexta-feira, 26 de março de 2010

Complicadas Utilidades




Maldita, você não me olha, não me vê. Só porque fiquei careca, engordei e você ai sentadinha de braços e pernas cruzadas com o seu pretinho básico. Não me pergunte a hora. Não me pergunte nada. Apenas não quero saber. Estou enfiado em dívidas, não sobrou um puto para pagar o aluguel, estou sem beber há dias, não consigo me divertir. E você continua passiva, praticamente muda, olhando para a minha barriga como se fosse a coisa mais horrorosa do mundo. E não me diz nada, não faz comentário, apenas balança a cabeça de um lado para o outro nessa atitude cínica.

Maldita, como eu te amei, como -- por Deus -- eu continuo te amando. Eu sou um cavalo, uma anta, porque eu não consigo me entender. Como posso ficar tão dependente de uma pessoa como tu? Eu quero me libertar, mas nunca consigo. Sou preso ao teu olhar, ao teu silêncio, ao teu cinismo, a tua grande hipocrisia. Não consigo viver sem isso, sem a sua resposta sempre evasiva, a esse sorriso sarcástico de eterna reprovação. E o pior das contas é que assim me sinto razoavelmente bem, assim me sinto em casa, assim me sinto confortável, assim me sinto.... útil.

quarta-feira, 24 de março de 2010

A Sopa



Colocou o vestido preto, os óculos escuros e chegou cedo. Postou-se ao lado do caixão. Não conseguiu chorar nem se emocionar. Na hora da cerimônia ouviu quieta o que disse o padre que abençoou o cadáver. Acompanhou o cortejo até o túmulo. Recebeu de todos os votos de pêsames. Já exausta pegou o taxi e foi para casa. Tomou um longo banho e colocou o roupão. Era preciso limpar: o prato de sopa, a colher e, sobretudo, o tempero discreto e forte que derruba até cavalo.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Consideração




Meu abandono
Não é gratuito
Estou mais a fim
de frequentar outros pontos
Não, eu não te abandonei
Não te abandonarei jamais
Apenas dou voltas por ai
Contemplo outros ares
e lugares.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Unhas Roxas




No início pareceu amável e amigo. Depois de posar de querido fez alguns resvalos, mas quem não faz? Depois, com a convivência, começou a mostrar seu verdadeiro tipo. Sua postura ficou estranha, lançava olhar vazio para uma direção sem fim. Nessas horas era impossível a comunicação. Ele simplesmente desligava.
Ela achava que aquilo era apenas uma pequena tolice, uma insignificante mania. Com o passar do tempo ele começou a fazer pedidos inusitados do tipo, hoje de noite quero que você use unhas roxas. Ela achava estranho, mas como não gostava que ele se zangasse resolvia fazer todas suas vontades. Ela sempre se submetia. E ele nunca notava essa submissão, porque achava que aquilo era amor.

Ninguém nunca questionou se um dia ouve ali o amor propriamente dito. A história fatal, a mistura cruel do ódio com a revolta, terminou e os corpos foram enterrados. O desejo de cremação não se realizou por motivos óbvios. O inquérito foi encerrado e arquivado uma semana após. O que se sabe da vida íntima, pelos poucos depoimentos colhidos, é que os dois deixaram de se falar, eles simplesmente não se comunicavam mais. Ele mandava e ela cumpria. E foi isso o que ocorreu naquela trágica manhã.

quinta-feira, 11 de março de 2010

O Quintal




O quintal da casa que morei na minha primeira infância era imenso. Foi ali que comecei o primeiro e único jogo de bolinha de gude. No ano passado fui dar uma espiada. Pedi licença para a dona da casa de artigos zen que se estabeleceu no local e entrei. Aguardei a sensação de "deja vu" que estranhamente não apareceu. Aquilo tudo era muito, muito, muito pequeno. Definitivamente, não era o mesmo lugar.

terça-feira, 9 de março de 2010

Cai o Pano




Leio a miraculosa receita. Ela me convém. Não fico triste, apenas me apaixono. Sou como ave de rapina e todo o cuidado é pouco. Na hora de atacar é necessário olhar para todos os lados antes de dar o bote. Sempre estive presente na vida dessa forma. Errado ou certo é assim que funciono. Mas agora penso que estou doente e necessito de um remédio amargo para curar as minhas insatisfações. Minha porção de melancolia chegou ao limite e carrego comigo meu próprio elixir que inventei olhando a rotina de outras vidas. Foram anos e anos de pesquisa e conhecimento. Armazenei todas as fórmulas nas minhas prateleiras. E volta e meia redescubro novas transformações e faço as necessárias readaptações. Reescrevo diariamente as minhas memórias. Meus dedos cansam. Suspiro hoje com nunca antes suspirei. Mas continua a pensar forte, a ter idéias para os novos desafios, tento não resistir às críticas e aos contrapontos. É um processo doloroso que requer muita calma e determinação. Não é fácil ouvir dos companheiros que minhas teses podem estar abaladas ou, até mesmo, mofadas. Detesto quando colocam por cima de mim o rol das insastisfações. Nessas horas não sou todo ouvidos. Debaixo de meu egoísmo existe algo necessário que é minha determinação. E do alto do meu egocentrismo me dirijo com cabeça erguida e cheio de orgulho para dar. Leio as frases com a necessária clareza, mesmo que ninguém escute, pois todos foram embora cansados de assistir ao show que ainda não começou.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Sempre Talvez




Ela não sabe o meu nome. Eu não sei o nome dela. Talvez ela nem tenha notado a minha presença, apesar de todos esses anos. E estamos sob o mesmo teto, no mesmo salão, recebendo as mesmas ordens. Enquanto ela fala e explica para os clientes as complexidades das faturas da Companhia, eu faço a checagem das ligações. Pois eu tenho esse poder absoluto de escolher quem deve falar com quem. E ela nem sabe disso, não é sua tarefa saber, nem a minha divulgar a todos o que sei. Muitas vezes eu transfiro as ligações mais complicadas para outras atendentes como a R5, J6 ou a B9. Com isso eu a poupo dos infortúnios, das chatices, da aporrinhação. Por que faço isso? Não sei. Até gostaria de saber. Geralmente nos levantamos na mesma hora. Passamos na cantina, tomamos nossa água, café, comemos o nosso lanche e voltamos. Nunca conversamos. Aqui pouco se conversa. Pouco se diz. Pouco se sabe. Não é nossa função. Hoje - quando tudo isso acabar - penso em falar com ela. Tenho vontade de perguntar seu nome, comentar sobre o dia, dizer qualquer coisa. Não sei como ela poderia agir. Se vai responder ou não. Eu nunca sei. Ontem não consegui. Hoje talvez eu consiga. Talvez.

Porque Hoje é Primeiro de Março




Tenho medo de ser espaçoso, de cheirar mal, de ter mau hálito, dos meus cabelos brancos, dos meus dentes tortos, de esquecer de usar desodorante, de enloquecer, de dizer coisas sem sentido, de ser chato para caramba. Tenho medo de ser burro, de agir como uma anta, de ser destroçado pelos meus pares, de perder a voz, de não conseguir ouvir nada, de não mais sentir. Tenho medo de quem tem medo de mim, de quem me olha com apreensão e desconfiança. Tenho medo de me tornar uma pessoa certa, previsível, rotineira, cheia de manias e ritualmente desorganizada. Tenho medo de nunca mais ter pesadelos, de não mais gostar de ouvir música, de detestar os livros de mitologia, de desaprender tudo o que aprendi, de não ter mais vontade de viajar, de não mais vibrar quando meu time faz gol, de ficar sem o quê dizer diante dos paradoxos. Tenho medo de me tornar outra pessoa, de não ser mais eu, de ser apenas um títere adaptado às novas mudanças.

Eu vi


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