Buscando não se sabe bem o quê.

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

O Abrigo


Na madrugada do dia eles se acomodam como podem, uma noite sem silêncio. A lembrança curta é ingrata para quem sonha. Onde está o meu colchão? Grita, sapateia, faz alarde. E todos dormem nos mesmos podres cantos entre os sofás mofados, descosturados e ocupados com pés e cabeças. Ouve-se o rosnado do cachorro solto. Ninguém se identifica, porque ninguém tem saco para isso. Que deixe o grito rolar, uma dia se encontra. O cansaço que toma conta e alivia o desespero de quem passou o dia percorrendo os passos de ontem. Com sapatos ou descalços todos descansam bêbados, drogados, alguns sóbrios. Assim, na melancolia do mesmo estado eles despertam na manhã seguinte em busca da sopa das 10 horas no bairro distante do outro lado da cidade. O abrigo é curto e a hora do dia é amarga. Tempos insensíveis da excrescência humana. O cheiro humano é forte, catastrófico no lixo do mundo. Cheiro humano de ralo entre os colchões. Finalmente é achado o colchão na manhã seguinte com manchas de sêmen que inunda o útero e faz florescer os nossos filhos de amanhã.
Imagem: Bina Fonyat.

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

A Senha Para os Outros Limites


No meio de todo o conteúdo existe um fato que foi pinçado para melhor esclarecer o contexto. Estava tudo tão nebuloso que o entendimento parecia tão distante. Na verdade, ninguém se interessava muito em compreender. O ambiente estava cheio e carregado e o cheiro do suor era forte na noite intempestiva de julho. O tema realmente não fascinava, mas parecia importante. Era um desafio para uma diminuta minoria, mas não passava de um passatempo desprezível para a maioria de sempre - cansada de tudo. O "fato pinçado para esclarecer o contexto" era a gota dágua para a necessária compreensão. O pré-requisito para os próximos passos. A senha para os outros limites. Mas, infelizmente, poucos prestam a atenção. O barulho de fora e de dentro, o calor exacerbado, o cheiro humano, a sala cheia, o horário da noite pesada, os eternos problemas de cada um, a crise de sempre, eram aspectos que retiravam do interlocutor a devida e necessária atenção. Definitivamente, o assunto era importante, mas não havia foco. Talvez as pessoas que estavam ali sempre sentadas nos lugares mais estratégicos e com as antenas ligadas puderam perceber esse aspecto fundamental. Talvez. Mas agora ninguém sabe, porque o sinal tocou na hora certa e todos se dissiparam para o compromisso de suas vidas.
Imagem: Bruno Calls

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

O Bairro


No encontro da minha cegueira vislumbro os passos que caminham pelo bairro. Eles se vão com o vento primaveril que sopra quase forte. Sem rumo, sem voz e sem piedade. Do outro lado da esquina do sinal -- como sempre ocorre -- está o rapaz com cara de febril que passa descalço cambaleando entre os carros. Do outro lado da rua está um senhor mais velho a procura de latinhas para entregar para seu dono. Não percebo certos desesperos, porque ninguém percebe neste bairro esse tipo de coisa. E a toda velocidade um carro importado passa no sinal amarelo. Ninguém vê ninguém. Nele o homem com a grife da hora fala ao celular com a namorada. Marcaram o encontro no bairro, no café onde todos se encontram que fica ali na mesma rua. Na frente, nos dias de sábado, se estabelece ali a florista que vende as mais belas flores da cidade a preços exorbitantes. Tem quem compra, avisa ela... Tem quem compra....
foto: Marcelo Coelho

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Pros que Estão em Casa


Frio na manhã da primavera de feriado nacional. Dia da república e do sentimento republicano. Os dedos ardem no teclado por causa de uma unha que encravou. Todos dormem e eu espero. Baixo músicas novas. Estilos de outras épocas. A eterna busca pelo belo perfeito que recomenda - de forma determinante -- fazer todos os exercícios necessários. Queimo os hits pirateados da nova e velha vanguarda no aparelho de MP3. Preparo-me. Necessito de movimentos continuados para conquistar o grande desafio. Correr até o Gasômetro e voltar. Devo fazer isso em 45 ou 50 minutos. É só traçar a direção certa, sem titubear. A cidade está vazia essa hora da manhã. Não se pode vacilar diante dos objetivos. Foi a estratégia de vida que escolhi. Erva quente, copo de leite, àgua fria, duas cápsulas azuis. E lá me vou no compasso de meus passos, nos movimentos continuados, os tênis bem amarrados, procurando toda hora a postura ereta, a pisada firme com o abdomen estendido. O boné - dizem - é maneiro e o aparelho faz o ritmo da velha canção que canto olhando para mim:

Até bem cedo esperei pelo telefonema, tapando com peneira, o sol que vai nascendo, não vou tomar café, nem escovar os dentes. Eu vou de aguardente como o sol que queima a praça. Bom dia boa tarde good night quero dar um tapa de topete e cara - vi nova york internada e meu amor não deu em nada nem sobrancelhas eriçadas e a essa altura do fato nem fumaça tem cano de descarga .......


(a velha canção que canto olhando para mim é do hojerizah - Pros que Estão em Casa)

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Baby Doll


Meu rumo era o baby doll. Dinheiro no bolso. Loja perto. Só atravessar a rua. Sem risco nem nada. Estava tudo como eu queria. Objetivo único da saída - cumprir a promessa da noite anterior. Ali estava, na vitrine, bem exposto. Pijama, camisola e baby doll no corpo dos três manequins. Imaginava preta. Esses são marrons. A porta trancafiada e a paranóia de sempre. Não tive opção, toquei a campainha. A guria viu e me olhou. Achou que não tenho cara de bandido, deixou entrar. A primeira sensação de todos os sentidos foi sentir o perfume intenso que se estendia por toda a loja. Perfumes de boutiques - enjoativos depois de algum tempo. Fui direto ao ponto, aquele baby doll ali na vitrine, é esse que eu quero. Imaginei preto, disse. Não, não mesmo, respondeu a guria. É marrom. Sempre foi. Modelo lindo feito com tecido frio. Esta ai desde sábado. É este que eu quero.

Fui embora, com a sensação de que o fim de tarde valeu a pena.

(foto de J.R. Duran)

terça-feira, 13 de novembro de 2007


Depois de tudo - eles se encontraram e o abraço da cumplicidade foi intenso.

Quando o Amor Pode Fenecer


O pensamento vazio de todas as horas passa de acordo com a rotina de sempre. É ela que avalia o ânimo e o desânimo. Fazendo ginástica ou indo para a escola, o temperamento padece de algo mais. Um ser aditivo que necessita cumprir as formalidades da inconsequência e da irresponsabilidade. A ira de não se contentar com o que a vida oferece. O sabor de quero mais. Quero muito mais. Mais do que todos outros. Mais do que muita coisa. E tudo se limita a esse mesmo preceito, a angústia que alimenta os mesmos caminhos e os mesmos lados. O vício de tudo que lava a alma e que despreza o amor já conquistado. Como se fosse algo banal, que pudesse ser encontrado em qualquer esquina de qualquer lugar. Mentiras nada sinceras que agridem nosso próprio ser e fazem o coração do vivente sofrer muito mais além da conta. E o pior, faz sofrer quem não teve nenhum culpa e que apenas incorporou a inocência de uma alma que acredita nas palavras de quem diz. O cristão pode amar a felicidade, mas ele nunca vai poder enganar a si mesmo. E quando percebe o engano, padece. Existem caminhos na vida que são mormacentos e nebulosos. São caminhos que a saída só pode ser encontrada se a ajuda tiver a santa vontade de ajudar. Enquanto ela não chega, o sujeito fica cego de pouco enxergar, sequer a luz consegue ver. Distante, muito distante, no tunel da vida, está o inspetor acompanhando todos os desenlaces e anotando no velho lápis de sempre os mesmos passos e os mesmos vícios.
(foto de Maureen Bisilliat)

domingo, 11 de novembro de 2007


Eu gosto de gente que canta alto sem perceber quando está com fones de ouvido.


(foto de Mirian Fischner)

Egberto Gismonti

Passeio de Cão


Alguém passeia com seu poodle na rua quase privada. Domingo de manhã é um dia bom para esse tipo de passeio, pensa. A calçada vazia. Poucos carros estacionados. É uma rua diferente, bem arborizada e calma. Tudo como tinha que ser. Não fosse a ilustre figura que circula do outro lado da rua, com seu schnauzer. Por enquanto ela não enxerga nada, porque caminha olhando as fachadas dos prédios. São entradas de bons edifícios, alguns com esculturas e outros não, casas da década de 50, 60, época de outras horas. O coração da memória revela que já se passeou e se circulou ali, isso faz alguns bons anos. A mesma pessoa, mas com outro cachorro. Este, pelo menos, é menos estressado. Não faz muito alarde. O passeio rende, sem brigas. Um bom cãozinho, bom cãozinho. E os dois cães se olham e puxam seus donos para a mesma direção: o centro da rua. Eles se cheiram, abanam seus rabos, seus donos, enfim se olham. Já se conhecem? É macho? Pergunta. Não, é fêmea, resposta imediata. Ah! É mancinho?
E cada um parte para seu lado, para seu canto, para suas vidas. E aquele momento sequer ficou registrado. Vai acabar no esquecimento. Amanhã ou depois, eles novamente podem se cruzar e um vai perguntar ao outro: É macho? É fêmea? Ahhhhh! É mancinho?

sábado, 10 de novembro de 2007

Cabelos


Macy Gray tem cabelo Black Power
Joe Cocker praticamente não tem cabelo
Elvis Costello usa costeletas
Rita Lee tem cabelos vermelhos
Alceu Valença usa chapéu
Alice Cooper não molha os cabelos
Killie Minogue vai todos os dias ao cabelereiro
Phil Collins é careca
Sting tem pouco cabelo
Renato Russo não penteava o cabelo
Gilberto Gil já usou trancinhas
Os cabelos de Caetano estão ficando brancos
Não sei como são os cabelos de Jorge Drexler
David Bowie gosta de descolorir
Michael Jackson alisou
Sandra Sá usa chapinha
Eram bonitos os cabelos do Cartola
E os Beatles usavam cartola.




quinta-feira, 8 de novembro de 2007

O Sussurro


Finalmente identifiquei o código secreto. Depois de muita busca e formatação. Depois de muita procura - consegui. Demorou, mas foi. Aprendi a inserir no texto o contexto necessário. O tom harmônico da música e seu acorde peculiar. Estou realmente de parabéns e muito feliz. Meu comportamento gentil foi essencial para cumprir esse incrível desafio. Foram jogos de muita paciência e no meio de todos os números e letras aprendi a pinçar as palavras necessárias sem nexo e sem lógica. Foi um aviso do além, uma chamada dos espíritos, uma voz que veio do interior e que me sussurrou devagarinho a senha de entrada e o login necessário para acessar a todos os dados que eu preciso. De agora em diante tudo será novo. Tudo será diferente e tenho de me preparar para essas novas etapas. Esta noite vou dormir tranquilo a espera de um novo sonho, de um novo aviso, de um novo sussurro.
(A Foto acima é de Antônio Guerreiro)

Los Hermanos - Samba a Dois

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

A Professorinha


Teus olhos são negros. Negros como a alma. Negros como a cor da vida. Negros como a presença de todas as cores. São negros. Negros e belos. Impossível parar de olhar para eles. Negros. Totalmente negros. Mais negros que a negritude. Mais negros que a escuridão sem fim.
A reflexão é a seguinte. Não se pode, sob hipótese alguma, mostrar indiferença em relação às contradições impostas e que não podem, simplesmente, ser varridas para baixo de algum solitário móvel. Exclama: não podem, não devem, não quero!
Os diálogos impostos são apenas parte de uma reflexão inesgotável sobre a existência humana. Entre o dever de casa e os compromissos da vida real existe um grande caminho a percorrer. E todos sabem disso. Está reclamando por que?
E no alto do altar, a professorinha discute sobre o tema em questão. Seus alunos ficam admirados com sua singeleza e clareza que contrasta com sua forte imposição. O quadro negro realça seus negros olhos. São olhos de pessoa brava, que cobra de tudo e de todos o dever cumprido. Rigorosa ela não varre poeira para baixo das cadeiras, sem contradições. Ela quer descobrir sempre a fonte inesgotável do conhecimento.
No fundo da classe, da sala de aula, sempre no mais nebuloso local, sentado, o inspetor adivinha os próximos passos, preparando o necessário relatório, as fórmulas parecem esgotadas. Mas não estão. Ele pinça os detalhes e não percebeu -- porque não quis perceber -- os negros olhos da linda professorinha.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

O Significado das Invenções


O perfume transparente na cama lacrada sem porta e nexo. Caiu o fluxo de tudo, ninguém passa e não se ouve nem mesmo o assovio de uma alma que passa. Faca longa, manchada de cheiro de carne cortada para fazer o almoço. Enquanto isso, do outro lado de tudo alguém imagina uma cena cruel para fazer um corte e transformar a vida num roteiro de grandes emoções. Como se fosse um filme B, um longa curto, uma cena simplória e cheia de significados. Mas ninguém entende nada. Nadita. Nem o copo vazio de água velha que cai sobre a mesa vazia, quase escura, onde os estigmas se reunem para jogar cartas fora. E tudo é muito tolo. Muita perversidade, lacunas de ganância, receios de soberba. Quando o velho senhor, arma suas invenções e caminha pelo canto preocupado com o destino de seu filho, que é fraco, e não tem grandes luzes, ele desafia todos os ritos para entender os defeitos de uma educação sem limites. Maldita hora, pensa. Maldito lugar, imagina. E o toque sutil do relógio desafina porque o tempo não tem fim e ninguém consegue acordar na hora certa. O mundo está cheio de pesadelos, sonos intranquilos, conversas eloqüentes sobre o nada. E o maluco não percebe que sua hora já chegou e que suas frases desconexas tem algum significado para o velho inspetor que anota os versos de sempre enquanto imagina o destino de uma certa humanidade que continua viciada pelos mesmos motivos.

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Neologismo


O tira chupou a vergamota.
A criada pegou a bassoura.
O guri deu uma cambota.
O professor disse que tá tudo certo.

O Canto do Bem-Te-Vi


Noite de sonho curto. Insone. Insossa. O quarto frio de hoje e amanhã. Das últimas horas. Das próximas horas. E quando chega a manhã de neblina, o corpo pesa, a dor na cabeça, o coração sente. E se olha em volta, para todos os lados. Nada se reconhece. É tudo tão estranho. É tudo muito novo. O calafrio toma conta de tudo. É impossível pensar muito. Ninguém consegue soltar lágrimas secas numa hora dessas. Ninguém consegue ser razoável. Noite de intolerância consigo mesmo. Noite que não acaba. E já é manhã. Fria primaveril. Pode ser bonita, pode ser feia, tanto faz. Tanto fez. O olho que olha fixo sem enxergar. Pensando em alguma coisa sempre incerta, insossa, insonia. Cadafalso. O calafrio da madrugada. A batida do relógio que não para de bater. O tock tock do tempo que passa e não passa. A luz do relógio das altas horas. Que horas são? Que horas foi? O tempo que bate e não pertence a ninguém. A todos. Falsidade. O cheiro do café, do mate amargo, da flor da manhã. O barulho da avenida lá embaixo. Os carros que passam e não olham. Ninguém quer olhar. Apenas ninguém. Tanto faz, tanto fez. O bem-te-vi que canta perto da janela e que inventou a cor do dia.

Eu vi


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