Buscando não se sabe bem o quê.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Negros








*Fotos de Fernanda Zerbini.


Olhos negros que ocultam
como flor na madrugada
da noite tempestiva
tempestade mal dormida
porque chove

Enquanto isso
no apogeu de tudo
cala a boca
lentamente
inconsciente e ouve

Portanto nada mais
pode ser feito
está posto
está acabado
mas ciente de tudo - fecha

E a presença da forma quase física
tísica que a noite de chuva prepara
no desgaste do cansaço da chantagem
parece terminar
com todos esses detalhes - roubados.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

O Condomínio











Na madrugada de ontem ouvi o grito que não queria ouvir. Acordei de pronto e fiquei pensando no que poderia ser. Um acidente? Um roubo, assalto, homicídio? Era apenas um grito e nada mais do que um grito. No alto do prédio de tantos andares, as unidades ficam bem abaixo do meu ângulo de visão. Ali de cima controlo tudo. Não preciso de câmera ou de escuta. Apenas ligo meu sexto sentido e fico monitorando a vida de todos, controlando todos os hábitos, os costumes e as manias. Sempre imaginei que todas as agendas passassem por mim. Mas naquela noite aquele grito, naquele horário da madrugada, estava totalmente fora de previsão. E esse ato inusitado, extraordináriamente preocupante acabou com o meu doce sono e me fez temer pelo pior. Um grito solto na madrugada poderia ser e simbolizar zilhões de coisas. Pensei até na imaginação dos sonhos. Um grito opaco perdido na madrugada de um grande prédio de apartamentos, onde todos dormem no segredo de suas vidas, o que mais poderia ser? Pensei nisso tudo e um pouco mais, virei para os dois lados a procura da melhor posição para o bom descanso. Não queria ouvir mais nada, porque meu maior receio é perder o controle de tudo e de todos. De fato, conclui no cansaço do travesseiro, foi um sonho, um pesadelo perdido na madruga do mormaço. O grito não existiu, era apenas o aviso de um cérebro caduco que se mostra cansado pela desilusão do viver.
* fotografias de Juan Esteves

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Meio Dia


Manhã de espera aguardada. Quanto riso, quantos rostos que não se conhece. Mas que bom que é assim. Se fosse de outra forma, a insegurança tomaria conta de tudo e não seria mole descer a ladeira da vida. Na incógnita, disfarçado de alguma coisa mais simbólica, com a máscara de sempre ele sai para a rua da vida, desce as escadas e entra no coletivo onde as pessoas apenas respiram a ansiedade do dia comum. E no fim da linha, na parada mais próxima dali, ele se perde na lembrança da tarefa que organizou fazer. Por que mesmo eu vim aqui? Indaga. Olha o relógio que não tem e parte para a mesma estação de onde chegou. Qual o caminho a tomar? reflete. E passa duas horas ali, tentando pensar em alguma coisa. Qualquer que seja ela, um simples gozo, uma pequena admiração, a busca de uma agenda interrompida. E chega a incansável conclusão de que a vida foi feita de receitas tolas, mas o tempo custa a passar e o ambiente está cheio de ambulantes como ele que se disfarçam com as mesmas simples roupas do dia a dia. Tá todo mundo nu, imagina. E a hora de ir embora, enfim, chegou. Ele toma o mesmo caminho de ontem, além de outra gotas. É tarde, pensa, enquanto ouve o o relógio central bater no coração do meio dia.
*foto de Ricardo Alcade.

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Os Churros do Vô Gervásio


Onda marrom e salgada de verão sadio. O sol torra e a barraca está cheia de gente. A areia vestida de papel de picolé que as crianças pedem cada vez que o carrinho passa. A corneta toca, o tic-tac da casquinha, o sabor da infância da década de 70, olha o puxa-puxa, da mesma praia que estamos agora. Naquela época, ao menos, havia cinema e as crianças podiam perambular pela cidade inteira: a pé ou de bicicleta. Hoje elas ficam em casa jogando os jogos pirateados de playstation 2. As pessoas percorrem os mesmos caminhos em volta das quadras que estão cheias de novos e enormes edifícios. São os novos moradores da região da serra que tomaram conta da nossa praia. Pessoal de pele clara, barriga gorda, sotaque esquisito, comedores de polenta. E lá no cantinho da memória estão os famosos churros do Vô Gervásio, os mais nobres e deliciosos do Brasil, uma receita secreta que ele descobriu num sonho da década de 50. E as décadas passam, os anos modificam a cidade balneária que cresce para o alto, as torres de Torres. E a banquinha do Vô Gervásio continua a vender os mesmos churros recheados de mumu ou chocolate para as velhas e novas crianças.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Os Crocs


Gostei do teu croc vermelho
Vou comprar uns pins para ele
Se encontrar vou comprar
Se tiver grana no bolso vou comprar


Ele combina com o meu - marrom
E fazemos um par que anda pela casa
que sobe a escada e, no fim do dia, quando o sonho chega
cada um fica no seu lado da cama


E quando recebermos nossos amigos para uma recepção digna
Usaremos felizes os crocs vermelho e marrom
e o comentário da festa vai ser aquele que a gente imagina:
hummm, que casal mais descolado!

Matrix


Faça logo o login e vê se liga
digita a senha correta e vem para cá
vem faça logo, corre
não titubeia
ligado


Descalça no parque ela anda
e passa por todos desconfiada
todos notam e anotam
a silhueta longelínea de bailarina
Que bom se isso fosse verdade


E não é
é tudo imagem
retocada imagem irreal
como a velha senhora que deita na cama
com o velho senhor que admira seu corpo
e os dois se amam numa noite transparente


Enfim, o filme acabou, o sonho morreu
a brincadeira foi inserida no arquivo de mídia
os canais se desplugaram
o login foi quebrado
e a senha partida.


*foto de Otto Stupakoff

A Lembrança


Lá pelas tantas o amor desceu do céu e dançou uma valsa no salão de espelhos transparentes. Uma valsa nunca antes dançada e o som do violino longe fica distante de tudo. A valsa de um casal que continua a dançar e dança a vida inteira até que a morte os separe. E de fato, um dia ela chegou e pinçou um dos pombinhos e outro parou de dançar. E a música subitamente terminou, sumiu, desapareceu. E tudo ao redor foi se transformando em formas, as cores apareceram, as pessoas começaram a falar, as crianças a correr, ligaram a televisão e o vendedor continuou a vender os velhos filmes de antigamente. E o salão de espelhos transparentes subitamente desapareceu, evaporou, foi para o espaço. E a memória amarga de tudo isso não conseguiu captar nem mesmo os belos passos necessários para acompanhar o pé de valsa. O condicionamento necessãrio nem existe mais. Na sacada do velho sobrado de sempre está a lembrança do violino torto que foi utilizado por uma bela madame da época da orquestra imperial. Ela olhava atenta para todos os lados e buscava no compasso dos pés o andante e o moderado em que afinava seu instrumento. A lembrança do casal que tanto dança e não pára de dançar fez parte de um sonho maravilhoso de uma velha senhora que está deitada num quarto e que não pode mais caminhar. Foi a melhor notícia do dia, disse ela para a acompanhante.
*imagem de Walter Firmo

Eu vi


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