Buscando não se sabe bem o quê.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Contagens




Sobre a pequena mesa -- cadernos com os espirais soltos, canetas gastas sem tampas, lápis quebrados sem pontas, borrachas velhas mordidas, calendários de anos antigos, pilhas gastas, folhas em branco passadas e uma moderna luminária metálica. Debruçado sobre ela, sentado numa pequena cadeira de plástico, um homem novo com aparência de velho. Ele não tem nem mesmo quarenta. Os tempos são atuais, a história se passa hoje, neste exato momento. Cansado da mesma posição o homem cruza e descruza as pernas, tenta alongar e não consegue. Com isso, não se sabe bem o porquê, ele sente sede. Tem dificuldades para levantar, mas assim mesmo busca na prateleira da frente uma garrafa de plástico com líquido preto, uma espécie de coca cola artezanal. Ele bebe, com algum prazer e alívio, o líquido quente.
O dia parece invernal, pois houve a necessidade de se colocar um casaco. Faz dias que ele procurava na pequena janela algum risco de sol que nunca entrou por ali. E nem entrará, porque já é quase noite e os dias estão muito fechados. Pois no centro da grande cidade, onde ele está, os edifícios se conectam uns aos outros e, por isso, as luzes artificiais não se acendem no fim do dia. Elas estão sempre ligadas, mas não são eternas. Naquele pequeno e simples recinto há uma única lâmpada presa na luminária moderna, mas com prazo de validade expirado. Ela pisca de forma constante, cansando e hipnotizando os olhos.
Ele, então, pela terceira vez naquele dia, aceita seu próprio desafio. O homem olha fixo para a luz branca tentando contar quantas vezes ela pisca por minuto. O relógio não mais funciona, as pilhas estão gastas. Ele inicia sussurrando cada número de forma bastante meticulosa: um, dois, três, com todo cuidado para não errar. E segue assim com receio de equívocos, onze, doze, treze. Trinta e um, trinta e dois, trinta e três. Quarenta e quatro, quarenta e cinco, quarenta e seis. E quando chega perto dos sessenta ele sente que já perdeu a contagem. Ele não consegue desanimar, porque aquilo é apenas uma angustiante brincadeira, uma espécie de passatempo compulsório, uma forma que ele encontrou para não perder a lucidez. Em algum momento ele vai conseguir e quando isso ocorrer o tempo e o relógio voltarão a funcionar.
Com essa intenção ele prossegue o desafio e inicia a contagem pela quarta vez naquele dia.

Um comentário:

Bípede Falante disse...

dEUs cego, parece que você está recuperando com as palavras a sua visão.

Eu vi


visited 31 states (13.7%)
Create your own visited map of The World