Buscando não se sabe bem o quê.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Ordem de Despejo


Minha mãe perguntou um dia se eu era querido com minha mulher. Eu disse que sim, que fazia todas as suas vontades, que tentava não ser violento nas palavras, no humor e na vida. As duas me deixaram e eu estou sozinho no mundo. Tenho, na memória, esse curto diálogo que não demorou nem um minuto. Eu não achei estranha a pergunta e nem mesmo comentei com minha mulher. Minha vida era assim. Talvez esse tenha sido o meu grande pecado. O meu erro. O silêncio e a solidão, minha omissão. A solidão em si não é algo ruim e prejudicial. Muito pelo contrário, estar só significa também uma forma de autoconhecimento e de experiência. Mas quando se olha para os lados e não se enxerga ninguém nem mesmo do outro lado do mundo, quando se abre a agenda e não se consegue pinçar nenhum nome para, ao menos, tomar uma pinga ou uma cerveja. Aí, meu caro, se pode dizer que você está sozinho no mundo. Ninguém fica sozinho a toa. A solidão não é como doença que atinge o corpo e deixa o vivente estendido na cama. Solidão é processo. E eu entrei neste processo porque eu quis, porque eu me omiti, porque assim eu escolhi. Sim, sou tímido, tenho dificuldades para me relacionar. Tenho dificuldades afetiva. Isso minha mulher reclamava todo o dia, toda a santa hora, até que uma noite ela me deixou. Ela disse que não me aguentava mais, que não havia diálogo entre nós, que ela estava farta de estar sempre sozinha e isolada nesse inferno de vida. No início fiquei aliviado, porque não aguentava conviver sempre com a mesma cobrança. Eu tinha que dar um jeito na vida, eu tinha que trabalhar, eu tinha que trazer dinheiro para casa. Eu tinha que comprar o pão. Mas eu, por acaso, não estava sempre sozinho? Simplesmente, não lembro de mais nada. Que conversas nós tinhamos? Sobre o que falávamos? Nós nos suportávamos e ela não mais aguentou e deve ter pedido asilo numa casa próxima ou distante. Não fui atrás dela. Não sei onde ela anda, porque não temos mais contato. Não criamos laços, não tivemos filhos, apenas memórias de uma relação solitária. E aqui estou sozinho, sem agenda, sem contato, sem amigos. Eu e mim mesmo. Mas eu não lamento, porque eu consigo me suportar. Melhor assim do que de outra forma. Sim, eu era feliz com minha mulher, mas era feliz do meu jeito, no meu canto, no meu lado, com os meus segredos obscuros, desde que respeitem o universo da minha solidão. Minha solidão não me traz infelicidade. Eu apenas fico angustiado quando as luzes da cidade se apagam e eu permaneço calado olhando a vista escura de longe na sacada. Não ouço música nem nada. Não suporto diversões. Tenho preguiça de ler e escrever, apesar de estar fazendo isso hoje, nessa noite clara de muito luar. Não suporto as novas tecnologias. Não gosto das cores da vida publicitária. Não quero e nem posso consumir. E aqui estou perplexo. Absolutamente solitário, sorvendo o mate quente da erva que me deixa aceso para penetrar a madrugada com mais vigor. Eu simplesmente não durmo. E, por isso, não acordo. Eu vivo aceso, ligado. Tem horas que eu me canso, mas essa fadiga não diz respeito ao que eu sou, a minha essência. Eu me canso da vida compartilhada, das cobranças, dos compromissos e da responsabilidade. Eu me canso da vida em comum e por isso eu escolhi a via que me leva ao isolamento absoluto. Por isso eu vivo em um lugar ermo, numa região onde o sol pouco brilha. Onde o ônibus nunca chega. Onde o silêncio reina absoluto. Meu lugar predileto é o despovoado. A ausência de pessoas, o cheiro do mato, do campo, o cocô dos animais. Mas nem sempre eu fui assim. Minha infância foi alegre e festiva. Fui bem tratado pelos meus pais. Tinha amigos que brincava. Eu corria pela velha casa, pelas estradas sujas de barro. E depois eu me lavava nos riachos, nos chuveiros elétricos. E de repente eu ficava frio. Não conseguia enxugar. Eu congelava. E não conseguia flexibilizar. Eu tinha problemas e ninguém nunca me avisou. Conheci minha mulher cedo, na escola. Ela era tímida como eu. De poucas luzes e filha de agricultores da região. Minha mãe logo simpatizou com ela. Elas eram unidas e uma se preocupava com a outra. Eu nunca entendi e nunca procurei entender aquele tipo de amizade. Mas eu não queria que aquilo acontecesse e nos isolamos. Ficamos isolados. Eu me isolei, ela se isolou até não aguentar mais. Partiu numa noite como a de hoje, numa primavera. E aqui estou disfarçado de eremita, rabugento e casmurro. Não consigo rir, não vejo graça, não suporto a felicidade dos outros. Amargo, conto a história da minha vida enferrujada porque ela está no fim. Não deixo testamento e nem codicilo. Essa casa não é minha casa. Ela foi ocupada porque estava abandonada e solitária, como eu. Hoje o oficial veio me intimar para desocupar o local. O prazo termina amanhã. E o sol está nascendo. Daqui a pouco ele vem cumprir a ordem judicial. Para onde eu vou? Não sei.


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