Buscando não se sabe bem o quê.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Chinelinhos se Arrastando na Ardósia




Quando Greta foi embora eu senti mal. Nunca pensei que fosse sentir saudades de Greta. Juro. Nunca pensei nela, nunca me preocupei com ela. Na verdade, confesso, eu nunca falei com ela. Ou melhor, eu nunca conversei com ela. Não sei nada sobre sua vida, se é casada, solteira, viúva, separada ou desquitada. Não sei que idade ela tem. Não sei se tem filhos, mãe, pai, avós. Não sei onde ela morou antes de vir para cá. Nunca me meti na vida dela, mas ela partiu. Convivemos quase diariamente, por exatos dois anos, na mesma casa. Eu tenho certeza absoluta, a gente se entendia. Greta sabia exatamente o que fazer, sabia a hora de levantar, de passar, de cozinhar, de ir ao armazém, ao mercado, sabia a hora do café, do almoço e do jantar. Sabia, sobretudo, pôr a mesa, algo muito difícil hoje em dia. Quando chegava à noite, ali pelas 7 horas, eu colocava no balcão da cozinha os 30 reais do dia seguinte. Todo dia, tudo igual, inclusive aos domingos. Combinamos que ela podia ficar com o troco e com o resto da comida. Eu não cobraria o pouso e nem as ligações telefônicas locais. Mas raramente ela telefonava. Era essa sua remuneração. Greta tinha, deixe-me lembrar, as pernas grandes, o rosto magro, a pele clara, o cabelo emaranhado, os pés imensos. Era mais alta do que eu. Greta Heller, sim esse era seu sobrenome porque está na caderneta das minhas anotações. Eu já sinto falta de seu cheiro, seu odor, sua voz forte, o ruído de seu inconfundível chinelinho se arrastando no chão de pedra fria. Nunca comentei nada com Greta. Não tinha porquê fazer isso. Nunca trocamos confidências e intimidades.

******

Os chinelinhos se aproximam devagarinho se arrastando pela ardósia e ingressando, sem autorização, no quinteto de Schubert. Eu preparo o drink do meio dia. Ela deveria estar na cozinha fazendo o almoço, como sempre fez. Mas ela estava ali na minha frente, me olhando fixamente. Seu Rodolfo o senhor me acha bonita? Eu gostaria tanto, seu Rodolfo, que eu fosse vista, ouvida, comentada, falada. Seu Rodolfo, eu gostaria de ser admirada. Juro que achei muito estranho toda aquela conversa, bastante íntima para o meu gosto. Pensei comigo, essa garota deve ter tido alguma desilusão. Fiquei quieto, completamente calado, como sempre faço. Em seguida, me dirigi à sala de jantar. Deixei a pobre coitada sozinha com seus devaneios infantis. No dia seguinte, bem de manhãzinha, quando lia o jornal perto da escrivaninha do escritório, ouvi o mesmo chinelinho vindo em minha direção. Dessa vez ela atropelou uma sinfonia de Brahms. Eu odiava aquele chinelinho que adentrava, sempre sem autorização, a orquestra de cordas e metais. Passo a passo se aproximava. Não me disse nada. Ficou calada me imitando. Não resisti e perguntei, o que foi? Vou embora, seu Rodolfo, os nossos assuntos a gente não resolve.

Nenhum comentário:

Eu vi


visited 31 states (13.7%)
Create your own visited map of The World