Buscando não se sabe bem o quê.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

A Morte de Um Ofegante


Ninguém. O cabo que liga a porta dos outros está sem contato. Nem nome e nem telefone. Nenhum registro. Absolutamente ninguém. Desconectado da vida que passa adiante com muita fé. E no abismo das relações tudo fica mais ou menos assim incomunicável. Homem enjaulado. O leão acorrentado que perde seus dentes. Livros? para que servi-los? Uma pessoa e seus livros, seus filmes, suas músicas, suas desculpas. A caixinha de sempre escondida na intimidade do lar -- onde o egoísmo e o egocentrismo habita. Mundo moderno que se distancia oculto e transparente, quase invisível. E de casa para o trabalho e do trabalho para casa, gente se aglomera no carro privado de sempre. Ouve-se rádios, fms, músicas importadas e tudo isso pode ser rompido. Basta um corte, um simples corte, de faca ou de caneta. Enclausurado em sua vida - bate ferro, bate no liquidificador, bate a porta e tranca ela com mil chaves, de cima para baixo e de baixo para cima. Confira todas elas. As grades, as portas, o controle remoto da garagem. Tudo fechado, lacrado, absolutamente em segurança. Ninguém viu e ninguém passou, mas alguém entrou. Chame a polícia e o psiquiatra, a camisa de força. Se algum maluco passou por aqui e tomou a água fria da geladeira e derramou cheiro humano nos móveis da intimidade a ocorrência tem que ser registrada. Dá um pulo lá e volta já. Tenha paciência e tenha fé. Tudo vai voltar a ficar no seu lugar. O ano que é novo está perto e este vai embora para nunca mais voltar. Se acaso você chegasse e abrisse a janela do quarto e colocasse uma lâmpada nova para melhor iluminar o sol da manhã ninguém reclamaria, porque existem pessoas que têm sempre razão. Não é o caso. Infelizmente, não é o caso. Chamem a polícia, o capitão, a operação especial, para prender o ladrão que nada roubou, sequer furtou, porque ele não existe. É invenção da civilização, é filme de ficção, é livro sem odor, é flor de plástico, um recheio do souflet que descansa parado no centro da mesa. Ninguém come. Ninguém tem vontade de comer. Não se bebe, não se belisca, que nem sonho para acordar, que nem aquele segredo que todo mundo já sabe, mas ninguém quer dizer, porque certas coisas não se diz. Se percebe, se assimila, mas não se discute. Para que brigar diante do fim? Melhor negócio do momento é vender a casa, sair dela, ir para um parque ou para uma praia. Lacrar as fechaduras e plantar uma notícia no jornal. O dia que a morte for anunciada muita gente vai morrer de pena. Pena para quê? Morte morrido ou matada, pouco importa. O caso é o seguinte, diria o inspetor, foi morte natural, morte súbita, sem empate. O primeiro a fazer o gol vence. Foi assim que ocorreu e assim a ocorrência foi transcrita no registro geral da primeira delegacia. O assunto nem foi parar no jornal. Nem mesmo um pequeno anúncio fúnebre foi divulgado. A morte realmente estava anunciada. E isso tudo é tão clichê. Todo mundo já sabia e alguns até torciam, porque nunca é bom prolongar os sofrimentos. Sei não. Esse papo é sério. Talvez sério demais e isso tudo preocupa. Quando a luz se apaga e fica tudo escuro se houve o latido de um cachorrinho reclamando da ausência de seu dono. E vai dormir numa hora dessas. Vai, vai, vai... relaxar sentido o desespero de um animalzinho insignificante que nunca foi visto. Impossível, o sono pesa, a morte pesa, o envelhecimento pesa, a preocupação pesa. E quando o sujeito está acima do peso ele corre menos, ele respira mais, ele ofega. Nesse estado, ele se emotiva na paranóia da interpretação. É tudo tão desnecessário. Para que sofrer diante de um restrito ponto de vista? Já acordou, já dormiu e já morreu. É passado, já fez história. Chega! Basta. Se não morreu que mate logo, "amor-cegando" o sofrimento. Dá um tiro de silenciador para que ninguém escute, para que o tempo passe de alma lavada. O corpo morto e ofegante que jazz na esteira do ginásio. E lá vem o inspetor novamente dizer: morte matada, morte morrida, quem sabe um pesadelo? Sim, sim, não mais que um pesadelo.

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