Buscando não se sabe bem o quê.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Manual de Instruções


Isso faz tempo, e o tempo passa e o tempo voa. Não é possível, infelizmente, recordar bem todos os fatos. A memória simplesmente desaparece, ela se perde pelos labirintos e os tropeços da vida. Mas, se não estou enganado, foi um dia de inverno ou de verão. Talvez tenha sido um dia de chuva ou fazia muito sol. Não recordo se era um dia de semana ou algum sábado alegre. Certamente não era domingo, porque naquela época certas atividades comerciais fechavam aos domingos. Naquela momento de vida, no auge da minha mocidade, resolvi entrar naquele imenso magazine localizado na esquina mais movimentada do centro da capital. Como era de costume, em cada andar tinha um departamento diferente: roupas masculinas, femininas, infantis, bazar, eletrodomésticos, restaurante. E as pessoas circulavam pelas escadas rolantes que conectavam aos departamentos. Tudo aquilo era o máximo. A grande programação de lazer, daquela época. Curioso, subi todos os andares até chegar no último departamento. Nem todos faziam isso, mas eu fiz. E lá encontrei exatamente o que estava procurando. Era só escolher, porque elas estavam todas ali completamente disponíveis. Era só pagar o preço, mas isso não importa. Naquela época havia dinheiro. E ninguém estava ali por grana. Depois de muito olhar e analisar os detalhes, porque os detalhes são sempre muito importantes, escolhi, enfim, exatamente aquela com o traço mais fino, com a vestimenta menos opaca, com cheirinho de bom perfume - o odor barato causava sensação de vulgaridade - com inteligência emocional no 'nível razoável' e com alguma dose de boa cultura. Ela parecia adorável, amável, com certa simpatia oculta e com uma forma simplesmente exuberante. Fiquei muito satisfeito com aquele formidável e inesquecível achado. Mas na ânsia de levar para a casa - e para a vida - aquela grande conquista, esqueci de algo muito importante e que poderia ser utilizado, se necessário, em circunstâncias mais delicadas: o manual de instruções. Muitos anos depois, no meio da meia-idade, quando a vida já está praticamente consolidada, no momento em que a cabeça entra em sintonia com o corpo e finalmente a maturidade consegue harmonizar e domar as graves crises da personalidade, quando a realidade se torna um pouco mais sensata, reapareceu, subitamente, aquela lembrança daquele momento único e formoso. O último andar da velha loja de departamentos. Pena que aquele local não existe mais. Foi embora e desapareceu. Foi atropelado pelas bancarrotas das sucessivas crises financeiras. No seu lugar resta a memória, mas existe ali um templo onde se reunem os cristãos de fé. Aqui em casa, encontro-me postado em cima do cimento que ergui sobre parte significativa da minha memória. Meu substato é refém dos mesmos mecanismos de defesa. Diante do impasse da velha memória não me resta alternativa, senão recuar, olhar para o horizonte do passado e lamentar o esquecimento. Naquele momento de grande ansiedade, quando analisava os pequenos detalhes para satisfazer minha vontade. Quando estava ocupado respirando o bom perfume, na ânsia de escolher o grande achado, eu vacilei. Sim, eu vacilei. Só agora percebi que aquele manual de instruções teria sido muito útil.
* Imagem de Daniel Garcia

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