Oi, minha rainha, deusa da minha vida, minha credibilidade ambulante. Onde andas nessa tarde de chuva grossa? Por que teu celular não me atende?
Eu te liguei para saber qual a fonte daquela informação que você me passou na última semana sobre aqueles casos complicados que a gente tanto discutiu nos últimos dias. Tenho pensado - e muito - sobre o assunto. Mas não quero falar em público sobre essa história. Pode ser confidencial.
Afinal, o que andas fazendo nessa tarde cinzenta que dá vontade de ficar em casa, deitado na poltrona, comendo pipoca e vendo um filme interessante. São quase quatro horas. Não consigo pensar em mais nada, apenas imagino nossos corpos presos no mesmo senso comum.
Finalmente bolei a idéia de que uma solução razoável possa vir -- mais cedo ou mais tarde. Não é uma grande sacada, mas uma sacada que pode nos tirar de todo esse dilema. O que fazer diante de um singular impasse? Acho que já me perguntei mil vezes. E lá se foram as horas de angustias e felicidades e, finalmente, te encontrei no meio do corredor de passagem. Te disse bom dia e você respondeu que a dor de cabeça havia sumido. Que bom, repliquei, assim você pode aproveitar melhor o dia. Não sei se você ouviu, mas foi isso o que falei.
E nós dois poderiamos estar agora presos no aconchego dos nossos corpos, olhando um para o outro e aproveitando o tempo perdido nos quatro cantos de todas as paredes do nosso principado. Mas não te encontro mais no teu número. Nem tua voz distante eu consigo ouvir. Talvez você tenha crescido ou envelhecido. Olho para mim e vejo minha barriga gorda crescer, minha barba consumir a boa aparência dos meus olhos, minha voz rouca embaralhar minhas frases raquíticas. Não sou mais o mesmo, porque meu orgulho genético parece ter tomado conta do interior das minhas profundas críticas. Esqueci de olhar para mim.
Belas horas de atraso são essas que passo a discutir comigo mesmo. Olho o relógio, no atraso. Falaria outro dia que isso me faz crescer, assimilar meus injustificáveis erros, os equivocos de nós mesmos. Mas agora é cedo ou tarde e o tempo parece que parou para nós mesmos. E a gente percebe nas entrelinhas de nossos discursos a nossa eterna boa vontade. Para quê sermos amigos, se podemos ser amantes? Para quê sermos cúmplices, se podemos ser coadjuvantes?
Deixa de besteira eu diria, deixa para lá, outra hora se discute, diremos um dia. Mas eu quero tudo, toda tua essência, sugar teu corpo, tua mente, tua alma como nunca antes fiz. Posso estar precisando de auxílio, sei lá!, posso estar completamente equivocado, maluco, doidão.
Confesso. Dentro de mim mora um jovem que me acompanha há muito tempo. Ele desfila como eu, com a minha imagem em todos os meus sonhos. Ele não percebe que envelheceu. Ele ainda te chama de rainha e de deusa. Ele te telefona, ele quer saber como você está, o que você está fazendo. Ele sempre te quer como se fosse a primeira vez. Mas ele não resiste ao abandono. Ele pode morrer por isso, mas ele não aceita sacrifícios. É difícil admitir que o tempo passou e não se é mais o mesmo.
Não se trata de um Dorian Gray e nem faz parte do meu retrato. Ele simplesmente não aparece. Ele é apenas uma obscura figura que habita as algemas do meu cérebro e faz parte do meu labirinto particular. Eu poderia chamá-lo de pequeno deus, ou o ceguinho das circunstâncias, mas ele parece ter uma alma ativa, um coração solidário que engana a mim mesmo. Não, ele não está mais doente. Aliás, ele nunca esteve. Ele sobrevive aos meus impulsos. Ele resiste e se manifesta. Às vezes eu o desprezo, porque ele não serve para nada. Nem pode servir. Ele faz parte da minha eterna inconsciência. Ele me incomoda e me diverte. Geralmente, ele me espanta. E o espantoso de tudo isso é que eu nunca tive a mínima vontade de expulsá-lo de minha casa. Ele fica ali, deitado no sofá, assistindo tv de barriga para cima tomando todos os meus vinhos. E eu não reclamo. Eu deixo ele usufruir minhas heranças.
Como tudo parece ser cíclico e o tempo - às vezes - se repete ou custa a repetir resolvi acabar de vez com essa embromação. A hora é agora. Esse pequeno ser tem que sair da toca onde se postou. Vou expulsá-lo. Não vou mais pensar que ele existe. De agora em diante, ele simplesmente não existe mais. Vapt e vupt. Pronto, ele se foi. Foi embora para sempre e agora estou só comigo mesmo. Finalmente, só. Ninguém mais pode intervir nas minhas vontades. Sou o único pensador de mim, o dono das minhas próprias pernas e o ator dos movimentos das minhas faces. Tomei conta do comando de mim mesmo. Assumi meus contornos e minha formatação.
Insisto mais uma vez e o telefone não toca. Minha rainha, deusa da vida, minha credibilidade ambulante está a minha espera na fila da padaria para comprar o pão da noite fria. A chuva cai, a gente se encontra e nada diz. Apenas sorri. Parece que o dia avançou. Parece.
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