
Aprendi a ler, a escrever e a me comunicar. Aprendi, também, a datilografar em máquinas mecânicas e elétricas. Participei até de campeonatos. E um dia o computador chegou na mesa do meu trabalho. O datilógrafo passou a digitar. Era fascinante teclar e ver as letrinhas verdes na tela negra do vídeo. Digitava petições, escrevia cartas, poesias e bobagens do cotidiano. Outro belo dia a internet chegou e passei a escrever e-mails e me comunicar com outras pessoas em tempo real, via chat. Imaginei personagens, criei fantasmas, vendi ilusões e desilusões, fabriquei mitos, manipulei corações. Meus dedos digitavam rapidamente mensagens à toa e enfrentava a alma e a razão de outras pessoas. Eu era mais rápido do que todas. O pensamento saia direto dos meus dedos. Os dedos dominaram minha vontade, controlaram meu cérebro, se rebelaram do resto do meu corpo e perdi o controle da vida.
Compreendi, então, que da (falsa) solidão do meu habitat poderia conectar outras solidões e que tudo aquilo fazia parte do mesmo universo solitário. A natureza inventada que convive em harmonia anônima na busca de questionável liberdade e felicidade. Confundia razão com carência e solidão com felicidade. Esquecia a dor alheia e a minha própria dor. Confuso dormia tarde quando todos já estavam dormindo. Atrapalhado menosprezei a razão. Eu era o homem sábio que detinha o controle da harmonia da vida.
Finalmente esse mundo caiu. A alma perdeu a anônima identidade. Esse logos foi descoberto. O divino ficou cego. Aquele kósmos perdeu a harmonia. A natureza maquiada perdeu o encanto. Minhas lentes de contato desbotaram. A sabedoria despencou. O discurso esvaziou. Quebrei aqueles dedos.
Meu corpo está sendo embalsamado pela leveza da purificação da alma. Meu purgatório. Fiz transplantes, troquei as lentes, passei a tratar da razão. Fortaleço a felicidade. Esqueço minha impassividade. Não sou mais o sujeito imperturbável, insensível, anônimo. Encontrei o kósmos.